Legalização da Maconha: o uso e a liberação da cannabis no Brasil

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Desde o século XV, a cannabis e suas diferentes espécies permeiam a cultura e a história dos brasileiros. Hoje, depois de quase 100 anos de ilegalidade da maconha no Brasil, a planta volta a ter um espaço, ainda que pequeno, na legislação do país

A relação entre a humanidade e as diferentes espécies da cannabis é milenar, mesmo que hoje em dia a legalização da maconha não exista no Brasil. Estudos mostram que, em 10.000 a.C, o cânhamo – variação da planta pela qual se obtém fibras que produzem tecidos, papel, alimentos e outras matérias primas – era usado em objetos de cerâmica em Taiwan. Esse período também foi marcado pelo início da agricultura, hoje principal base da economia global, o que influenciou o cientista Carl Sagan a acreditar que a primeira safra agrícola no mundo foi de cannabis. Já o efeito psicoativo da erva é explorado há pelo menos 2,5 mil anos, de acordo com evidências arqueológicas encontradas na China e divulgadas em junho de 2019. 

loegalização no brasil linha do tempo

A sua presença no Brasil, no entanto, é mais recente. Ela chegou no país junto com os portugueses, pois as velas e cordas das embarcações eram feitas de cânhamo e, segundo o relatório oficial do Ministério das Relações Exteriores de 1959, com os escravizados que trouxeram sementes de maconha dentro de bonecas de pano. Mas foi só no século XVIII que, para fortalecer o império colonial e diversificar a agricultura, Portugal resolveu investir no cultivo da erva em terras brasileiras a ponto de dedicar milhares de escravizados para esse trabalho. 

No artigo de 1980 A maconha, a cocaína e o ópio em outros tempos, o então Delegado de Polícia em São Paulo, Guido Fonseca, escreveu que, em 1785, o Vice-Rei do Brasil enviou ao porto de Santos dezesseis sacos com 39 alqueires de sementes de maconha, o que equivale hoje a 94 hectares ou 940 mil metros de plantação.

Enquanto se plantava cannabis para a fabricação de diferentes insumos, o fumo de suas variações psicoativas era associado exclusivamente aos africanos e seus descendentes. Mas esse uso não ficou liberado por muito tempo. Em 1830, no Rio de Janeiro, a Câmara Municipal restringiu o fumo da erva, penalizando os vendedores com uma multa e os compradores, muitos deles escravizados, com três dias de cadeia. Esse controle sobre a população negra continuou com o fim da escravidão no século XIX: além da maconha, o candomblé e a capoeira também eram vistos como pedras no caminho da “ordem e progresso”. 

Por outro lado, nesse mesmo momento, estudos sobre os efeitos da cannabis liderados pelo psiquiatra francês Jean Jacques Moreau tornou o uso da planta bem aceito entre a classe médica brasileira. Recomendava-se o fumo da maconha para pacientes (inclusive crianças) com bronquite, asma, insônia e outras condições.

Proibicionismo cresce internacionalmente e afeta o Brasil

Mas não demorou muito e já no século XX as políticas proibicionistas começaram a se intensificar mundo afora. Durante a Conferência Internacional do Ópio realizada em 1924, que visava condenar o uso do ópio e cocaína, o representante brasileiro se esforçou para incluir a cannabis neste grupo. A perseguição contra os comerciantes clandestinos e consumidores da erva no Brasil se reforçou.

Nos Estados Unidos, que já tinha grande influência internacional, o cenário não era muito diferente. Em 1930, perto do final da Lei Seca no país, se iniciou uma campanha contra a cannabis e seus derivados encabeçada por Harry Anslinger, comissário do serviço de narcóticos, que tinha ligações pessoais com empresas enfraquecidas pela indústria do cânhamo. Com aliados na imprensa, os esforços de Anslinger levaram o então presidente Franklin Roosevelt a criar uma lei que proibia o cultivo e comercialização da maconha no território norte-americano. 

Paralelamente, as companhias brasileiras de produções têxteis à base da erva começaram a ser fechadas e uma legislação nacional incluiu a cannabis na lista de substâncias banidas do país. Foram mais de quatro décadas em que o governo se empenhou para erradicar totalmente a planta e o mesmo acontecia internacionalmente. Em 1961, o Brasil e diversos países assinaram a Convenção Única sobre Entorpecentes, tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) que procurava combater o abuso de substâncias. Esse documento abrangia a cannabis como droga, mas ela já tinha se popularizado entre outros grupos além daqueles que eram tradicionalmente marginalizados. 

Em plena ditadura militar brasileira (1964 – 1985), o consumo da maconha e outras substâncias ilegais era intenso. Mas, em 1971, com a declaração oficial de guerra às drogas anunciada pelo líder americano Richard Nixon, a percepção negativa dos governos sobre a cannabis aumentou ainda mais.

Avanços em pesquisas e movimentos a favor da legalização da maconha no Brasil

Uma parte da população, no entanto, nadou contra a corrente. Elisaldo Carlini, um dos pioneiros dos estudos da maconha medicinal, liderou um grupo de pesquisa no Brasil a respeito dos benefícios da erva, do qual se obteve resultados que auxiliaram no desenvolvimento de medicamentos no exterior. O país, inclusive, hoje se destaca pela quantidade de pesquisas a respeito do assunto. O Global Trends in Cannabis and Cannabidiol Research from 1940 to 2019 analisou que, dos 1.167 artigos considerados de relevância científica e divulgados durante 79 anos,  a Universidade de São Paulo (USP) foi a que mais publicou textos sobre o canabidiol no mundo. 

Nos anos 80, além dos estudos científicos, também se iniciou o debate a favor da descriminalização (quando deixa de ser ilícito do ponto de vista penal) e legalização (todas as possíveis sanções são eliminadas) da maconha no Brasil. 

Uma década mais tarde, a discussão ficou menos acalorada, mas isso mudou em 2002 quando a portuguesa Susana Souza organizou, nos moldes de manifestações nos EUA, a “Marcha Mundial da Maconha” no Rio de Janeiro, que reuniu cerca de 800 pessoas. O assunto voltou a ser discutido fortemente no país. Alguns integrantes de partidos políticos se organizaram a favor da legalização da maconha no Brasil com o principal argumento de que o proibicionismo criminalizava e marginalizava os mais pobres, além de protestos eclodirem por diversos estados brasileiros. 

Depois de anos sofrendo repressões violentas, a realização da manifestação foi garantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011. A “Marcha da Maconha”, como é conhecida atualmente, se tornou um dos maiores eventos do país, com mais de 100 mil participantes na manifestação de 2019 em São Paulo (SP) e que acontece paralelamente em mais de 40 cidades. 

Atualmente, os estudos científicos sobre o potencial terapêutico da cannabis expandiram consideravelmente, e uma ampla gama de evidências comprova que os compostos da maconha são eficazes para uma variedade de condições médicas. Em uma busca sistemática na base de dados Pubmed, mais de 6 mil artigos foram encontrados com a palavra-chave “cannabidiol” e mais de 9 mil com o termo “medicinal cannabis”.  No geral, os artigos abarcam estudos com diferentes metodologias que objetivam analisar a eficácia dos derivados da cannabis no tratamento não apenas da epilepsia refratária, mas para quadros variados de dor, doenças neurodegenerativas, esclerose múltipla, distúrbios do sono, condições emocionais, entre outras variadas patologias.

No Brasil, observa-se também que universidades e institutos de pesquisas tem obtido autorizaçoes concedidas pelas ANVISA para conduzirem estudos cientificos sobre o potencial dos fitocanabinoides. Mesmo com a burocracia envolvida, o número de autorizações foi o maior da história em 2022, e quase cinco vezes maior do que o registrado em 2015. Dessas concessões, apenas a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) possui autorização para o cultivo da planta.

Implementação de lei afoga sistema carcerário e evidencia racismo

Em 2006, o Brasil instituiu a Lei de Drogas, nº 11.343, que substituiu a pena de prisão por sanções administrativas para os usuários que portavam pequenas quantidades de drogas para uso pessoal, sem especificar essa quantia exata. No entanto, a produção e o tráfico ilícito dessas substâncias ainda era considerado crime. A mesma legislação também especificava que a União poderia autorizar o plantio, cultivo e a colheita da cannabis para fins medicinais ou científicos, mediante fiscalização e em local e prazo predeterminados.  

Ainda assim, depois da aprovação dessa lei, que não distinguia precisamente usuário e traficante, as drogas se tornaram o maior motivo para prisões no país. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), a população carcerária aumentou de 361,4 mil presos, em 2005, para mais de 759 mil em 2020, sendo a maioria composta por homens pretos ou pardos. 

Além disso, de acordo com o Atlas da Violência de 2020 no Brasil, entre 2008 e 2018 as taxas de homicídios aumentaram em 11,5% para os negros, ao mesmo tempo que para os não-negros houve uma diminuição de 12,9%. Dados de 2017 do Tribunal de Justiça de São Paulo divulgados pela Agência Pública também apontam que negros são os mais condenados por tráfico e com menos drogas apreendidas. Enquanto 70,9% dos réus negros são condenados e 5,2% são classificados como usuários, 66,8% e 7,7% dos brancos recebem as mesmas sentenças, respectivamente. 

Todos esses fatos reforçaram as lutas pela descriminalização e legalização da maconha no Brasil. Em 2014, o assunto “cannabis” saiu das ruas e entrou nas pautas do Senado Federal quando André Kiepper, ativista capixaba, protocolou uma proposta para regulamentar o uso recreativo, medicinal e industrial da erva. A sugestão seria enviada para análise no Senado se obtivesse 20 mil assinaturas, o que foi o caso, mas acabou sendo arquivada. 

Em 2023, o Supremo Tribunal Federal retomou a discussão sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. O tema não avançava desde 2015 e trata do crime previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006, que impõe penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”. A falta de definição sobre o que é porte de droga traz consequências severas a usuários, que são classificados como traficantes devido a ausência de critérios objetivos que esclareçam a norma. Até o momento, o placar está em 5 a 1 a favor da descriminalização, mas o julgamento está suspenso pelos 60 dias que sucederam a última seção, pois o ministro André Mendonça solicitou mais tempo para avaliar o processo.

Demanda por maconha medicinal muda regulamentações

No mesmo ano, veio à tona um caso que revolucionou a história da maconha no Brasil. Anny Fischer, portadora de uma síndrome que causa epilepsia refratária, chegava a ter até 80 convulsões por semana e nenhum medicamento fazia efeito. Seus pais decidiram, então, importar ilegalmente o óleo de canabidiol ou CBD – substância encontrada na cannabis de espécie sativa que comprovadamente alivia os sintomas de muitas condições graves. Depois do primeiro uso, a menina logo apresentou melhoras significativas, o que fez a família entrar na justiça para trazer o óleo legalmente ao país. 

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Foto: JCOMP

O pedido foi aprovado e deu abertura para outras pessoas se manifestarem a favor do tratamento medicinal da cannabis e até solicitarem a mesma permissão nos tribunais. Os casos foram tantos que o Conselho Federal de Medicina autorizou a prescrição de canabidiol para crianças com epilepsia e que não tiveram sucesso em outros tratamentos. Em 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também tomou um passo à frente e tirou o CBD da lista de substâncias proibidas, incluindo-o na de substâncias controladas. 

Ainda assim, a única forma de obter o canabidiol era por meio da justiça e das importações, o que dificultava o processo e gerava um gasto enorme para o Estado brasileiro. A reportagem do Uol “Maconha medicinal no Brasil?” publicou que, em 2015, o Ministério da Saúde chegou a gastar por volta de R$ 462 mil para cumprir 11 mandados de segurança que beneficiaram 13 pessoas. Desse mesmo ano até 2019, gastou-se por volta de R$ 2,8 milhões em remédios de canabidiol, conforme informações divulgadas pela Fiquem Sabendo, agência de dados independentes especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI). 

O CBD, no entanto, não é a única substância da cannabis importante no tratamento de doenças graves. Pesquisadores comprovaram que seus benefícios são mais potentes quando em conjunto com o THC (tetrahidrocanabinol). Em alguns casos, os resultados medicinais chegam a não ocorrer quando as composições estão separadas. Esse efeito, denominado de Entourage, levou à determinação da Anvisa de retirar o THC da lista de substâncias proibidas no Brasil, liberando a importação de remédios que contém THC e canabidiol na fórmula.

Em 2016, devido ao custo alto dessas importações do medicamento e à demora de 60 dias para obter autorização, alguns pacientes entraram com habeas corpus para adquirir a permissão de cultivo e extração do óleo em solo brasileiro, com sucesso. 

Atualmente, no Congresso Nacional, estão em curso várias propostas relacionadas disponibilização de derivados da cannabis para finalidades medicinais. O PL 399/2015, por exemplo, propõe modificações no artigo 2º da Lei 11.343, de 2006, com o objetivo de tornar viável a comercialização de produtos com extratos de cannabis. Outra proposta, o PL 5295/2019, aborda a questão da Cannabis medicinal e do cânhamo industrial, além de abordar outras questões relacionadas. Já o PL 89/2023 tem como finalidade a criação da Política Nacional de Distribuição Gratuita de Medicamentos à Base de Componentes Derivados de Plantas, que contenham Canabidiol e outros compostos canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabinol, nas unidades de saúde públicas e privadas que estejam associadas ao SUS.

Em âmbito estadual, também ocorreram avanços nesse sentido. Em abril, o governo de Sergipe sancionou a Lei nº 9.178/2023, que estabelece a Política Estadual de Cannabis para fins terapêuticos, medicinais, veterinários e científicos. No início de 2023, o estado de São Paulo aprovou a Lei 17.618/2023, que institui a política estadual de distribuição gratuita de medicamentos formulados à base de derivados vegetais contendo canabidiol, em associação com outros compostos canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabidiol, nas unidades de saúde pública estaduais e privadas que sejam conveniadas ao SUS.

Legalização da maconha no Brasil: o uso medicinal

Com o avanço dos estudos científicos e as evidências da eficácia dos derivados da planta, o acesso a cannabis com finalidade medicinal têm se tornado um pouco mais simples nos últimos anos. No Brasil, já é possível encontrar os derivados da cannabis em drogarias convencionais, farmácias de manipulação, a partir de importações, e associações. As diferentes vias de acesso se tornaram uma possibilidade a partir da RDC 327 que estabelece regras para concessão de autorização sanitária para produção e comercialização no Brasil de produtos derivados de cannabis e da RDC 660 que autoriza e simplifica a importação de derivados da cannabis. Cada via de acesso possui suas particularidades, mas é notável o crescimento do acesso aos derivados da planta.

O número de profissionais da saúde aptos a prescrever os produtos também tem crescido, assim como as clínicas especializadas no assunto. Os produtos à base de cannabis estão disponiveis em diferentes formas farmacêuticas, concentrações, volumes, e formulações, que vão de acordo com a necessidade de cada paciente. O processo de importação depende de algumas etapas, mas foi simplificado nos últimos tempos, e o prazo máximo para receber a autorização de solicitação é de 20 dias. Confira melhor todas as etapas nesse texto aqui.

As associações têm desempenhado um papel crucial na disseminação de informações sobre a cannabis medicinal e no fornecimento de produtos seguros e de qualidade para seus membros. Essas associações muitas vezes trabalham em estreita colaboração com médicos e profissionais de saúde para garantir que os pacientes recebam o tratamento adequado. Esse trabalho colabora para que o conhecimento acerca dessa opção se torne cada vez mais amplo e acessível.

Mesmo diante de todos esses avanços, para algumas pessoas o autocultivo de cannabis ainda é a opção mais viável. Para que esses pacientes consigam cultivar a planta sem ter nenhum tipo de problema com a lei, é necessario solicitar um Habeas Corpus (HC), uma medida judicial que garante que algumas pessoas têm o direito de plantar, sem riscos de enfrentar esses problemas. No entanto, o Habeas Corpus é um processo complexo, que exige que a pessoa reúna laudos, orçamentos, prescrições, e outros documentos que comprovem a necessidade do cultivo da maconha para fins medicinais e a garantia de que essa seria realmente a opção mais viável para o caso. Estima-se que no Brasil, 3.500 pessoas tem HC de cultivo para finalidades medicinais.

Apesar de todos esses avanços, é inegável que muito preconceito, falta de informação e estigma ainda impeçam que o tratamento se expanda e seja uma possibilidade cada dia mais sólida na realidade de todos os brasileiros.

Enquanto isso, cerca de 40 países já autorizaram a cannabis medicinal no mundo e muitos também deram espaço para seu uso recreativo. Nos EUA, um dos pioneiros na guerra às drogas, apenas 3 dos 50 estados não têm nenhum tipo de descriminalização e legalização relacionada à erva. Isso se dá, principalmente, pelo grande ganho econômico envolvido. Durante o evento LATAM Retail Show no Brasil em 2019, especialistas do setor da cannabis previram que, até 2025, a indústria da planta movimentará por volta de R$ 200 bilhões no mundo, sendo que o mercado brasileiro poderia chegar a R$ 45 bilhões se houvesse uma regulamentação parecida com a dos países que permitem exportação.

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Maria Riscala

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