Quando se fala sobre o uso de medicamentos em crianças, é natural que as pessoas estejam com a atenção dobrada. A maior preocupação sobre esse tema envolve o nível de segurança das substâncias. O receio com os tratamentos infantis é presente nos casos de medicamentos alopáticos e se mantém em relação aos fitoterápicos. No entanto, a ciência se expande dia após dia e confirma que algumas substâncias são seguras para o uso infantil, quando administradas em doses e concentrações adequadas. É o caso dos derivados da cannabis, o uso da cannabis medicinal para crianças é eficaz para uma série de condições médicas que acometem a infância em idades variadas.
A cannabis e suas funções terapêuticas
A planta Cannabis sativa possui centenas de substâncias em sua composição e grande parte delas são farmacologicamente ativas. Esses elementos são chamados de fitocanabinoides. Os fitocanabinoides mais estudados são o delta-9- –tetrahidrocanabinol (∆9-THC ou THC), responsável pelos efeitos psicoativos, e o canabidiol (CBD), molécula que não produz efeitos psicoativos. O CBD vem sendo utilizado no combate a diversos sintomas como convulsões, dores crônicas, náuseas, entre outras.
O nosso corpo possui um sistema que interage com os fitocanabinoides e promove diversos benefícios, dentre eles, a homeostase. Essa interação ocorre em função dos endocanabinoides e receptores canabinoides, estruturas naturais do nosso corpo, que possuem grande participação no sistema nervoso central e periférico, e em outros processos como regulação do sono, apetite, controle de náuseas, alívio da dor, combate a ansiedade, depressão, controle da espasticidade e outros sintomas.
Crianças podem ficar “chapadas” ou criar dependência dos compostos da cannabis?
Não. Essa é a dúvida mais comum entre os pais e responsáveis por crianças que enfrentam condições que podem ser tratadas pela cannabis. No caso do CBD, a substância não tem propriedades psicoativas e, portanto, esse tipo de efeito não é um risco. Além disso, as substâncias com princípios psicoativos são disponibilizadas em doses muito baixas em medicamentos, de forma que podem promover benefícios aos quadros de saúde e efeitos diferentes dos causados pelo uso recreativo da planta. O uso conjunto entre os fitocanabinoides promove o efeito entourage, um fenômeno vantajoso para condições específicas.
Estudos científicos comprovam que o CBD não causa dependência, vicio, ou sedação, e pode ser prescrito para crianças com segurança. O uso do CBD no combate a determinadas condições médicas infantis mudou a vida de centenas de famílias no Brasil. A melhora no quadro de crianças é um marco histórico na luta pela regulamentação substância no Brasil.
Em 2014, A pequena Anny Fisher enfrentava até 80 convulsões por semana em função de uma síndrome neurológica rara. Após o uso do CBD, as crises foram controladas e Anny obteve uma melhora significativa em sua qualidade de vida desde o primeiro uso. Com sete anos na época, Anny Fischer foi primeira criança brasileira autorizada legalmente a importar o extrato de cannabis para fins medicinais. A família Fischer é um símbolo de ativismo pelo direito ao acesso ao tratamento com derivados da maconha, e Anny representa um dos grandes exemplos de crianças que foram beneficiadas pelo tratamento.
A cannabis medicinal para crianças pode tratar quais condições médicas?
Diversas condições e sintomas que podem ser tratados com cannabis medicinal acometem crianças em todo o mundo, como por exemplo a Epilepsia e o Transtorno do Espectro Autista, entre outras. Mas a boa notícia é que os compostos da cannabis são seguros e eficazes no combate aos sintomas de diversos quadros.
A cannabis medicinal para crianças com epilepsia
A epilepsia é uma condição que se caracteriza pela manifestação regular e imprevisível de episódios convulsivos. Essas ocorrências resultam de modificações no funcionamento do cérebro, desencadeadas por uma superexcitação e sincronização excessiva da atividade neuronal.
A apresentação dos sintomas varia conforme a área afetada, assim como a frequência das crises. É considerada uma das condições neurológicas mais prevalentes, a epilepsia afeta aproximadamente 50 milhões de indivíduos em todo o mundo. Cerca de um terço dos pacientes diagnosticados com epilepsia enfrentam casos refratários, caracterizados pela persistência de crises epilépticas mesmo com a utilização adequada, em dosagens apropriadas, de duas ou mais medicações prescritas durante o tratamento.
A epilepsia acomete cinco a cada 1000 crianças, e é mais comum em crianças com idade abaixo dos 10 anos. De acordo com os cientistas, a alta prevalência é justificada em função da imaturidade do sistema nervoso central em crianças, com pouca reação de inibição dos neurônios.
O principal tratamento das crises epilépticas é por meio de medicações anticonvulsivantes, que possuem como principal objetivo oferecer a interrupção das crises. No entanto, nem sempre as terapias convencionais são eficazes, e os dados mostram que até 30% dos portadores de epilepsia continuam sofrendo com os sintomas após o uso de fármacos tradicionais.
É chamado de epilepsia refratária ao tratamento a condição que não responde ao controle de crises após tentativas com no mínimo duas das medicações habituais. Esses casos são mais comuns em crianças muito jovens. Casos refratários são definidos a partir da falência no controle de convulsões após algumas tentativas com pelo menos duas medicações apropriadas, e é mais frequente em crianças que iniciam com sintomas nos primeiros anos de vida.
O fato dessa resistência ao tratamento ser tão comum, fez com que a comunidade cientifica investigasse alternativas eficazes para o alívio dessas crises. No final da década 70, os primeiros ensaios clínicos conduzidos com seres humanos registraram uma melhora significativa nas crises, pois cerca de 50% dos pacientes apresentaram alívio dos sintomas. Com base nesses estudos, o uso do CBD foi aprovado em diversos países. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), autorizou regulamentou o uso compassivo do CBD para o tratamento de quadros de epilepsia refratária na infância e adolescência.
Estudos clínicos que investigaram a eficácia terapêutica da cannabis medicinal para crianças com epilepsia mostraram que a administração oral da substância promoveu a diminuição da recorrência das crises, melhoria da estabilidade do quadro, no tempo de duração das crises, no efeito benéfico da alteração de humor e diminuição dos espasmos.
Dependendo do caso de epilepsia refratária, alguns profissionais optam por intervenções cirúrgicas, estimulação do nervo vagal ou dieta cetogênica. No entanto, outros profissionais prescrevem o CBD, que tem se mostrado uma possibilidade eficaz na redução das convulsões em comparação com outras alternativas farmacológicas.
O Transtorno do Espectro Autista
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma é um distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por comprometimento no comportamento social, na comunicação na linguagem e na presença de padrões repetitivos e restritivos de comportamento. Essa condição se manifesta na infância e é chamada de “espectro” pois inclui uma variedade heterogênea de sintomas e níveis de gravidade.
Estudos em modelos animais sugerem uma possível desregulação do sistema endocanabinoide no TEA. O sistema endocanabinoide está envolvido na regulação de neurotransmissores excitatórios e inibitórios, mecanismos comprometidos em pessoas com TEA. Esse sistema também está envolvido na modulação da liberação de ocitocina e vasopressina, que atuam na modulação de comportamentos sociais.
No TEA, o objetivo principal da utilização do CBD é o tratamento das comorbidades, principalmente agressividade, hiperatividade, comunicação, ansiedade e distúrbios do sono.
Em relação à utilização de derivados da cannabis em outras condições neuropsiquiátricas, existem modelos teóricos e estudos com animais que demonstram benefícios em ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático, depressão, esquizofrenia, disturbios do sono e transtornos por uso de substância.
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
O TDAH também é um distúrbio do neurodesenvolvimento que afeta cerca de afeta cerca de 5 a 15% das crianças. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª Edição (DSM-5), algumas comorbidades como ansiedade, depressão e queixas relacionadas ao sono são associadas ao TDAH.
Estudos científicos mostram que indivíduos que sofrem com TDAH tem um nível de dopamina inferior ao considerado adequado. Diante disso, os compostos da cannabis atuam na regulação do neurotransmissor e promovem benefícios aos sintomas.
A ansiedade e os distúrbios do sono, que também são comuns na vida daqueles que enfrentam o TDAH, são frequentemente tratadas com a cannabis, que tem se mostrado uma forte aliada no alívio das queixas. O TDAH pode persistir na vida adulta, mas é muito comum na infância.
Realizar estudos científicos acerca do potencial de um medicamento ou substância é uma tarefa complexa que exige uma série de cuidados. O estigma associado ao uso recreativo da cannabis é um grande obstáculo na condução dos estudos científicos que podem beneficiar a população infantil. Para que as crianças possam obter alívio em seus sintomas, e é muito importante que esses estudos sejam realizados para comprovar a eficácia das substâncias no tratamento de condições que acarretam sofrimento e prejudicam a qualidade de vida de indivíduos em desenvolvimento. Os efeitos adversos ainda são poucos esclarecidos e mais estudos com crianças são necessários para concluir se reações negativas realmente podem ser consequência da medicação.
No entanto, as pesquisas conduzidas até o presente momento mostram que os derivados da cannabis são considerados uma alternativa segura, eficaz, e promissora no combate a diversos sintomas que acometem crianças.