Veja nesse post a entrevista exclusiva que fizemos com a Dra. Mariana Muniz, condutora de estudos voltados para a cannabis medicinal. Nesse bate-papo focamos em um assunto importante que vem gerando diversos debates na comunidade médica: a relação da cannabis e a ansiedade.
O Brasil é o país que tem a população com mais sintomas de ansiedade no mundo, na qual se enquadram transtornos como fobia, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e ataque de pânico. Essas condições são comumente tratadas e abordadas pelas áreas de psicologia e psiquiatria, sendo esta última responsável pela prescrição de medicamentos alopáticos que visam a redução dos traços da ansiedade, mas que podem causar fortes consequências no corpo. Mas qual a relação entre os sintomas da ansiedade e cannabis?
Diversos estudos, no entanto, apontam que o canabidiol (CBD), substância sem efeitos intoxicantes presente na cannabis, pode ser eficaz no tratamento desse transtorno. Uma pesquisa realizada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP), em parceria com a Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP), concluiu que o CBD, além de ter propriedades ansiolíticas, não causa dependência e não afeta a cognição.
Por isso, com a regulamentação da maconha medicinal no Brasil, alguns profissionais da saúde vêm recorrendo à planta para tratar os sintomas de ansiedade de seus pacientes. É o caso de Mariana Muniz, psiquiatra e pesquisadora do Instituto do Cérebro, onde realiza seu mestrado sob orientação do professor Sidarta Ribeiro.
Mariana é uma das médicas citadas nas listas de associações para pacientes de maconha medicinal no Brasil, como Apepi, AMA+ME e Abrace. Em entrevista à Kaya Mind, ela falou sobre as causas e consequências da ansiedade, o uso das substâncias da maconha para tratar condições psiquiátricas e reforçou a importância do acompanhamento médico para utilizar todo e qualquer tipo de medicamento. Confira:
Kaya Mind: Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são quase 19 milhões de brasileiros com sintomas de ansiedade. Com a pandemia do novo coronavírus, isso só vem aumentando. Quais seriam esses sintomas ligados à ansiedade?
Dra. Mariana Muniz: Quando você me fala isso, você me dá um número que é o mesmo de pessoas que passaram para a linha da pobreza no Brasil: 19 milhões de pessoas. A partir daí, a gente consegue entender muita coisa. O [diagnóstico de] transtorno de ansiedade, ao meu ver, é falho, porque é uma soma de sintomas e ele arranha a superfície. Eu acho que o atendimento psiquiátrico deve se ater não só a esses sintomas, que são antecipação, somatizações, pânico – aquele corpo que você sente sem conseguir entender –, palpitação, dor no peito, vômito em períodos muito agudos, medo, fantasia, pensamentos de aniquilação e de humilhação pública, reverberação dos pensamentos… mas ao porquê disso estar acontecendo. Uma pessoa que é psicótica, com esses sintomas, está ansiosa? Uma pessoa que convulsiona muito e também sente essas coisas, tem a mesma ansiedade que o psicótico? E uma pessoa que passou por um trauma muito grande? Não é a mesma coisa. A ansiedade é como se fosse a pontinha do iceberg e, quando a gente fala de psiquiatria, a gente tem que convidar os pacientes a pensarem sobre isso. Pela limitação que nós temos em relação à medicação, que tem um limite de ação, a linguagem também pode atuar na formação de sinapses, no contato com o mundo e na remodelação da experiência. O grande rumo da neurociência é esse: conseguir colocar um meio na equação, não separar e ficar compartimentalizando.
KM: Quais são as possíveis causas para a ansiedade? Na sua opinião, por que você acha que os brasileiros estão sofrendo tanto com essa condição?
Dra. Mariana Muniz: Acho que a causalidade na psiquiatria é um problema, a gente consegue colocar causa e efeito quando são atos muito verticais. Do tipo guerra, estupro… aí você consegue estabelecer isso. Mas como mulher, latina e brasileira, eu posso inferir que esses sintomas têm uma conexão com o tecido social. O Brasil tem um passado muito violento e a leitura desse passado é de abafamento. A verdadeira violência que há no Brasil e a atual gestão federal do país são a égide da nossa guerra particular: há guerras na amazônia e na periferia. E isso tem uma ponte estreita com a maconha. A gente vive sob uma pressão silente, o Brasil é um dos países mais perigosos para nascer mulher. Partindo da questão neurocientífica, você tem uma ameaça constante do meio e isso reforça determinadas sinapses, determinadas vias, de modo a você ser mais propenso a ter ansiedade. Há evidências de mutilação de DNA no trauma – quem sofre muito trauma, tende a ter proles mais sujeitas ao alerta. Ao alerta do que não está dito, no nosso caso. Aí a gente entra na Covid-19, que é um fator estressor longitudinal e transversal.
KM: É, estamos no pior país que gerencia a pandemia. Não é uma coincidência que os casos de ansiedade estejam aumentando.
Dra. Mariana Muniz: Exatamente, e não é só a ansiedade de nós sermos o pior país. É que nós poderíamos ser um dos melhores. A Covid-19 traz uma violência silente: a insegurança alimentar, a insegurança de moradia. Quando olhamos para a elite, o brasileiro sofreu uma decepção. Parte dessas pessoas são muito ressentidas com qualquer instituição do Estado e isso tem seus reflexos. Ainda tem aquilo que une todos nós, que é a morte de quem a gente ama e a nossa própria morte. Todo mundo tem um breaking point, ou seja, algum lugar que se pegarem ali, a pessoa cai. A morte é um ponto que é transversal, todo mundo enlouquece frente a ela. As pessoas estão com medo. E isso causa muita ansiedade.
KM: Para tratar esse transtorno, a maioria dos médicos receita remédios alopáticos. Esses medicamentos são eficazes?
Dra. Mariana Muniz: Eu defendo um uso muito racional de antidepressivos, tem que ter data para acabar e para tentar diminuir. Eu sei o que é tratar um paciente e ele melhorar – antibiótico para pneumonia e diurético para insuficiência cardíaca, a pessoa melhora na hora. Isso não é igual com os antidepressivos, você não pode ter o mesmo raciocínio cartesiano. Mas sim, os remédios podem ajudar. É importante interromper esse ciclo, a pessoa precisa respirar, lembrar quem ela é e o que ela pode fazer. Não só os antidepressivos como os antipsicóticos, em baixas doses, ajudam. Se as pessoas fizerem uso racional, trabalharem em outros pontos, buscarem dentro de si, cuidarem do seu próprio corpo com carinho… se abordarmos essas questões biográficas, os medicamentos podem ajudar sim.
KM: Existem efeitos colaterais desses remédios?
Dra. Mariana Muniz: Sim, por isso é importante uma avaliação médica especializada. Com o tempo, atendendo as pessoas, você conhece quem vai passar mal com antidepressivo. Os principais efeitos colaterais dos antidepressivos serotogênicos são agitação, sintomas dispépticos [queimação, azia, refluxo, etc], aumento de pensamento suicida, principalmente na retirada e inserção da medicação. O que mais me preocupa são os benzodiazepínicos – muitas pessoas são dependentes deles e têm um efeito muito nefasto no cérebro. Não há escalas que consigam aferir a dependência de benzodiazepínicos, porque o rebote é muito parecido com os sintomas iniciais e não há interesse de provar como tratar isso para as pessoas pararem de usar. Custa de 10 a 13 reais uma caixa desses medicamentos. Eles têm impacto na memória, existe risco de queda e, em mais de quatro semanas de uso, você tem 50% de chance de ficar dependente.
KM: Vários estudos apontam que a maconha é eficaz no tratamento da ansiedade. Como a planta interage com o organismo para isso acontecer e quais são os possíveis benefícios dessa interação?
Dra. Mariana Muniz: A gente tem um circuito e, nele, existem os receptores endocanabinoides. No cérebro, temos vários canais, que ligam nos neurotransmissores, que são essas moléculas e são alvo da maioria dos medicamentos psiquiátricos. O medicamento psiquiátrico atinge uma gama de canais, uma gama de portinhas. Se a gente somar todas elas, a gente tem mais do sistema endocanabinoide do que de todas as portinhas de todos os outros [sistemas]. Para cada via dessas portinhas, você tem um sistema endocanabinoide, como se pilotasse a entrada e a saída dessas moléculas. É um sistema regulador que atua numa função homeostática. A maconha atua em tudo isso. Ela traz um novo paradigma, que a gente está rebolando pra entender. O último dado que eu vi foi que existiam mais de 7 mil tipos de fenótipos da maconha. Ao plantar a semente, vai nascer um perfil de canabinoides naquela cepa – existem por volta de 150 canabinoides já registrados. Eles são muito parecidos com outras moléculas que têm na planta, como os terpenos e os flavonoides, que também ligam nesses sítios.
É muito caso a caso, a gente tem dados de que [a maconha] ajuda muito em várias patologias. Para a ansiedade, tem trabalhos e meta-análises que mostram a melhora dos sintomas. Você tem melhora da dor, dos sintomas de tensão e tem uma ação do óleo de CBD que eu acho bem parecida com a do antipsicótico. Ele dá apatia, regula essa interface com o meio num modo que as pessoas tendem a ficar menos ansiosas. Sem demonizar nem santificar nada, também tem suas implicações. É um remédio como outro qualquer.
KM: Por que o canabidiol (CBD), um dos fitocanabinoides da maconha, é mais recomendado para tratar os sintomas de ansiedade?
Dra. Mariana Muniz: Acho que tem dois vieses. A liberação da maconha no mundo ainda se deu com essa necessidade de manter a maconha nesse lugar proibido e o THC ficou nesse papel. Isso move as pesquisas, não tem como. Mas o CBD também tem ação nas vias glutamatérgicas e gabaérgicas, onde os benzos e diazepínicos têm essa função antipsicótica leve, mas, lógico que se você aumentar a dose, pode acabar deprimindo uma pessoa.
KM: Como o CBD se diferencia do tetra-hidrocanabinol (THC) nesse sentido?
Dra. Mariana Muniz: Os óleos ricos em THC podem causar um aumento de fluxo de ideias, a pessoa pode ficar mais alerta e ter sintomas paranoicos. Isso tende a durar de 30 a 40 minutos, mas depois, normalmente, vem uma sedação. O paradigma da biologia pura e simples não vale pro remédio psiquiátrico e não vale para a maconha também, então, é caso a caso. Existem métodos para você aumentar e mexer no perfil dos canabinoides, mas, infelizmente, no Brasil, a gente tem poucas opções… Eu acho que você tem que avaliar o paciente, e ver qual perfil de óleo tem disponível e qual pode servir naquela ocasião.
KM: Quais são as formas mais apropriadas para consumir a cannabis com fins terapêuticos? Por exemplo, a partir do fumo, da ingestão de comidas e bebidas, de uso de óleo, etc.
Dra. Mariana Muniz: Sou muito a favor de uma medicina com contato tácito, em que você está com o paciente para entender o que é melhor pra ele. Dentro da psiquiatria, a forma ingerida com extrato do óleo [derivado da maconha] em óleo vegetal, é a melhor tolerada. Tem um pico de ação, uma meia vida de mais ou menos oito horas, que sim, vai demorar mais pra “bater”, mas não é a mesma lógica de comer um space cake na Holanda. Eu não tenho pacientes que fumam, porque não trato dor crônica. [O fumo] é muito mais de cuidado paliativo oncológico. Para a psoríase, por exemplo, você pode usar produtos de uso tópico, porque tem receptores nas células que agem na psoríase e regulam a secreção. Os usos são muito variados, mas enquanto pequenas doses de óleo já são suficientes, se você fuma, o tanto de endocanabinoide que você vai ter no seu sangue dura de 11 a 15 minutos, então com esse pico, sobrecarrega o sistema endocanabinoide e o efeito é fugaz e potente. Para o paciente psiquiátrico, eu não acho isso interessante.
KM: Então você já recebeu pacientes com ansiedade procurando o tratamento com a planta?
Dra. Mariana Muniz: Eu recebo bastante gente sim. Das mais diversas patologias, mas eu procuro me manter na minha área. Não sei como estão esses dados agora, mas há dois anos, tinham 60 mil [pacientes] registrados na Anvisa e a subnotificação era alta.
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KM: Como foram os resultados desses tratamentos com seus pacientes?
MM: Tem seus desafios, é um tratamento caro. Isso restringe muito o escopo de quem vem se tratar. Além de ser de difícil acesso, o tratamento é muito idiossincrático. Para você inseri-lo, o ajuste de doses pode durar três meses, então é preciso estar bem perto do paciente. Nenhum tratamento é milagroso, então [o paciente] tem que fazer terapia e começar a descobrir o próprio corpo, seja de que maneira for. Não vou ficar cantando que tenho sucesso com todo mundo, afinal, nem todos respondem tão bem, mas a maioria sim.
KM: Por fim, a maconha pode ser recomendada para todo paciente com ansiedade? Quais são as contra-indicações?
MM: O óleo de CBD é de baixo risco. Se você sabe aplicar, consegue manejar. A gente não tem estudos a longo prazo, mas tem a maconha escrita nas primeiras tábuas cuneiformes – e se isso não é um estudo longitudinal, com 12 mil anos [de existência], eu não sei o que é. Mas é um medicamento relativamente de baixo risco; tem determinadas pessoas que respondem mal, mas os outros medicamentos também têm seus riscos e você pode contrabalancear com outras medidas. Acho que essa pergunta não tem muita resposta, precisa de acompanhamento médico, uma avaliação caso a caso. Nenhum remédio deve ser usado de qualquer forma.
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