Neurocientista, biólogo, professor, pesquisador, autor de diversos livros, vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), presidente de honra da Federação de Associações de Cannabis Terapêutica (FACT), conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)… seriam necessárias inúmeras linhas para introduzir Sidarta Ribeiro, um dos maiores nomes do cenário da cannabis para fins medicinais no Brasil e no mundo.
Estudioso do tema desde 2006, Sidarta acredita na importância da regulamentação e legalização da cannabis e de outras substâncias para todos os usos – medicinal, adulto ou industrial. A partir de argumentos ponderados e realistas, fala sobre o quanto o Brasil já perdeu e ainda perde em não investir nesse mercado de tanto potencial, explica os benefícios descobertos a respeito da maconha, os quais serão ainda mais numerosos com o passar dos anos e o investimento em ciência, e aponta a necessidade de reparação social em uma legislação que englobe amplamente a planta.
Confira a entrevista à Kaya Mind abaixo:
Kaya Mind: Para começar, você pode contar pra gente qual foi o seu primeiro contato com a maconha? De onde e como surgiu a vontade de estudar a planta?
Sidarta Ribeiro: Meu grande interesse por cannabis começou quando eu vi a revolução do sistema endocanabinoide. Quando entrei no curso de biologia, nada disso estava disponível em livro nenhum, e, no meu doutorado, estava acontecendo nos encontros científicos, depois nas revistas científicas mais gerais, e, de repente, em 10 anos, mais ou menos, a gente tinha que pensar no sistema de novo, porque estava faltando um elemento, que era o central. O sistema endocanabinoide era um grande integrador metabólico e fisiológico, tanto a nível de estruturas cerebrais, quanto a nível de cascatas metabólicas e de sinalização entre as células e dentro das células. Era uma coisa muito complicada que estava fora do mapa e, evidentemente, na hora que entrou, mudou tudo. Então, fiz parte dessa geração de pesquisadores e biólogos que viram isso acontecer e se perguntaram como mudaria o debate público sobre cannabis medicinal, consumo adulto de maconha, guerra às drogas e o que a gente sabe, hoje em dia, sobre a biologia e psicologia da planta.
KM: Quando foi isso, mais ou menos?
SR: Eu me lembro de ter esse choque, claramente, em 2005 ou 2006. Mas era algo que já estava acontecendo, porque o sistema endocanabinoide começou a ser decifrado no final dos anos 1980. Mas eu fiquei inteirado disso quando comecei o doutorado em Nova Iorque; no Brasil, não tinha visto nada. Mas claro, havia pessoas como o professor Elisaldo Carlini, que fez décadas de pesquisa de ponta e teria feito de liderança, se tivesse tido apoio. Caso o Brasil tivesse feito como Israel, a gente teria participado disso junto com eles, porque o professor Elisaldo Carlini sempre trabalhou com os israelenses e com o professor Raphael Mechoulam, que é o líder mundial inequívoco dessa questão.
KM: Foi o Raphael Mechoulam que descobriu o sistema endocanabinoide, certo?
SR: Exatamente, e foi também quem descobriu as principais propriedades do THC e do CBD. O professor Carlini participou disso.
KM: A gente faz um acompanhamento das pesquisas científicas, principalmente as que estão no PubMed que falam desse tema, e, até 2001 e 2002, a média por ano eram de, aproximadamente, 200 pesquisas, em 2004 esse número pula para 400 e, em 2006, que é bem esse ano que você mencionou, a média vai para 600. Em quatro anos, o número de pesquisas sendo realizadas pelo mundo triplicou. Hoje em dia, a gente sabe que está exponencial.
SR: Exatamente.
KM: Eu já vi você afirmando em outras entrevistas que a cannabis é a grande revolução da medicina do século XXI, assim como os antibióticos estavam para o século XX. Por que você acha isso?
SR: No início do século XX, e todo tempo anterior, as pessoas morriam muito facilmente de infecções causadas por microorganismos diferentes e por doenças muito diferentes. De repente, a penicilina pode resolver várias doenças com esse remédio mesmo sendo causadas por agentes diferentes, basta que tenha uma similaridade metabólica e funciona. Claro, o antibiótico não é panaceia, você pode usá-lo mal – tudo que é usado de maneira errada, dá errado, então, se você tomar um antibiótico com doses e posologia erradas, isso pode levar, inclusive, à seleção de variantes perigosas. Um raciocínio semelhante pode ser aplicado à cannabis no século XX, porque contém diferentes classes de substâncias (canabinoides, flavonoides, terpenos), que, isoladamente, ou em conjunto, possuem muitas propriedades terapêuticas que se aplicam a diversas doenças. Assim como os antibióticos no século XX, em sua maioria, extremamente baratos de serem produzidos e provenientes de fungos, hoje em dia, temos um remédio que vem de uma planta, que é usado há milênios. A discussão agora é qual é a forma mais inteligente de redescobrir isso. A cannabis medicinal é uma realidade histórica e tem uma realidade do momento presente, social, econômica e política. Acho que é, por isso, que é a única pauta progressista que avançou sem parar no Brasil nos últimos cinco anos.
KM: Me corrija se eu estiver errada, mas ao contrário dos antibióticos, a gente não cria uma resistência à cannabis medicinal.
SR: Os mecanismos são bem diferentes dos antibióticos. Os canabinoides em conjunto, nos óleos de extratos de amplo espectro da planta, não parecem induzir tolerância importante. Então, parecem ser muito úteis por muito tempo e isso pode ter a ver com a complexidade das moléculas, do efeito comitiva, da complexidade da preparação do óleo e de variações, que, inclusive, podem ser benéficas. Mas, é claro que os canabinoides, assim como qualquer substância, podem ter uso problemático e gerar problemas se forem utilizados de maneira errada. É muito importante que as pessoas entendam que toda substância tem um grupo de risco – o que pra uma pessoa é ótimo, para outra pode não ser nada bom. Por isso, precisa legalizar, regulamentar, dosar e ter um controle público bastante crível e transparente.
Isso não quer dizer que a única cannabis medicinal possível é aquela em que a dose exata é conhecida – não faz sentido científico e nem social. Para a maior parte das indicações, não só da maconha medicinal, mas de qualquer remédio, a dose aproximada basta. Quando você vai tomar um comprimido para dor de cabeça, você não pega o comprimido, pesa e corta com uma faca. Você toma um, dois, meio… a dose aproximada faz parte da posologia de qualquer remédio para situações normais do cotidiano. Para muitas pessoas, a maconha medicinal vai se encaixar nessa chave, e é por isso que é viável na farmácia viva do SUS e nas associações de pacientes. Inclusive, isso diz respeito ao cultivo individual que não está contemplado no PL 399, que é importante de se discutir e pensar que, para as pessoas mais pobres desse país, que são a grande maioria, mesmo uma mensalidade de associação pode ser caro demais. É verdade que, para situações específicas, pode ser importante ter um fármaco isolado, com princípio ativo puro, e que a dosagem possa ser medida no dia a dia dependendo do peso da pessoa, seja feito no hospital ou em casa. O que não pode é ter essa lógica se sobrepujando à popular da grande maioria.
KM: A gente perpassou por isso no nosso relatório de impacto econômico diante de um cenário de regulamentação ampla, não só do PL 399. Vemos a regulamentação da cannabis avançando a passos largos em alguns países, mas como você acha que o Brasil se encontra diante desse fato?
SR: Eu acho que o Brasil está se encaminhando para ter a sua primeira legislação minimamente razoável, que é o PL 399. Está muito longe de ser uma peça de legislação radical, ao contrário, é o consenso possível, fora as pessoas que são contra a ciência, a saúde, a vida e tudo, menos contra duas empresas. Por isso, vai avançar ao Plenário, onde vai ser aprovado, na minha opinião. Depois, vai à sanção presidencial, onde vai ser vetado, mas vai ser aprovado em Plenário. Agora, claro, para que possa haver esse avanço verde, é preciso que, no dia 7 de setembro, o verde e amarelo seja de fato da pátria, da mátria e da frátria. Se não for, tudo que eu estou falando aqui pode ser revertido. Mas houve um avanço consistente nos últimos 10 ou 15 anos dessa pauta, é inevitável. O que vai ficar fora [dessa legislação] é a questão do auto cultivo, que está contemplada nos habeas corpus, e uma quantidade enorme de associações que são capazes de produzir remédios de boa qualidade, mas não tem capital financeiro e intelectual para montar um laboratório de análise. Isso é uma tensão social, porque tem uma coisa da realidade e uma letra da lei que não olha para isso, ou seja, ainda está em tempo do PL 399 ser melhorado. Agora, qual a chance disso acontecer no congresso de hoje? Baixa, muito baixa, porque é onde justamente não tem a grana. O PL está lá porque se alinharam interesses de pessoas que estão doentes, que precisam se tratar e seus familiares, com a ciência que foi produzida nos últimos 15 anos, e os interesses econômicos, não nos enganemos. E é justamente os interesses econômicos dos mais vulneráveis que não estão representados ali ou, pelo menos, estão parcialmente representados.
Não sei como isso vai evoluir, mas eu entendo que existe uma emergência que está vindo à superfície com muita força; [a cannabis] é uma terapêutica realmente benigna, que tem pouquíssimo efeito colateral, grupo de risco muito reduzido e é popular. Eu estou muito curioso para ver o que vai acontecer no Brasil nos próximos dois anos, porque foram tantos anos de retrocesso, que, quando essa energia negativa se desorganizar de uma vez por todas, muita coisa boa vai ser construída nesse país por muitos anos. É importante que todo mundo que tem a mente jovem para o futuro, pessoas de quaisquer idades, esteja a altura desse momento para que nosso próximo ciclo de construção, de saúde, de educação, de cultura, de ciência, seja um ciclo duradouro. Que a gente não faça um ciclo curto, mas um ciclo longo de desenvolvimento, e a cannabis está totalmente ligada a isso. Ela é uma economia do século XXI, uma medicina do século XXI e tem a ver com políticas sociais, porque a guerra dos ricos contra os pobres no Brasil tem como instrumento a guerra às drogas. A maconha é a ponta de lança, porque é a droga mais barata, que faz bem para muita gente e muita gente usa, sendo a justificativa para o nível de brutalidade, de destruição da juventude, de controle social. Por isso, a gente tem que falar em reparação. Não dá para regulamentar a cannabis medicinal e criar um mercado tão fabuloso sem incluir as comunidades periféricas e vulneráveis que pagaram o preço da guerra às drogas. Quando vier uma legalização ampla que permita a comercialização, tem que haver capacitação dessas pessoas – é um mercado de nichos muito bem definidos, são muitas genéticas, então cabe muita gente. É importante falar da questão racial, de negros e negras que pagam o preço dessa guerra, principalmente. Tem uma outra questão que é destinar, majoritariamente, os impostos recolhidos por esse novo mercado para essas comunidades. Se nós não fizermos isso, então a regulamentação e legalização da cannabis medicinal vai ser uma pauta progressista da classe média.
KM: Devemos até rever prisões que foram com base na cannabis, como nos Estados Unidos, onde alguns estados já estão fazendo esse tipo de reparação, soltando pessoas que foram presas com maconha, agora que tem a legalização. Nada mais justo, porque você vai estar preso por uma coisa que não é mais crime.
SR: Exatamente, isso é muito importante. É uma coisa que foi problemática no âmbito das forças progressistas, porque muita gente não tinha as ideias claras sobre a guerra às droga e continuava comprando discurso padrão de que é preciso salvar as pessoas, e, na verdade, tapando o sol com a peneira sem entender que essa política repressiva não diminui o consumo, mas aumenta a dor, a morte e a corrupção do Estado. Isso precisa amadurecer, estamos falando de mecanismos de criação de desigualdade e de opressão que estão acoplados a essas crenças atávicas das fake news da maconha. “Se a maconha é proibida, deve ser porque faz mal”, “a maconha mata neurônios”, ” a maconha é a porta de entrada para outras drogas”… Todas essas mentiras que lavaram o cérebro das pessoas por décadas continuam pervasivas na sociedade e é muito difícil esse debate em muitas comunidades brasileiras.
KM: Outro dia me fizeram uma pergunta e eu queria fazer a mesma pra você. O que você acha que impactaria mais o país: o STF determinar uma quantidade mínima que delimite usuário e traficante – pauta que precisa acontecer, afinal, temos uma lei de drogas que faz essa diferenciação, mas deixa na mão do juiz e do policial estabelecer as quantidades – , ou uma regulamentação voltada só para o lado medicinal e terapêutico?
SR: Olha, essa é uma pergunta super complexa, pois ela é a escolha entre o que é certo e o que é possível. A história de você dizer que uma certa quantidade separa um traficante de um usuário, é uma maneira de tornar a lei atual menos subjetiva e a gente sabe que na subjetividade ela é enviesada, racista e classista. Parece uma boa ideia, mas pode virar péssima rapidamente se essa quantidade for muito baixa e, servir, na verdade, como um objetivo para encarcerar mais jovens negros e negras ainda. Além disso, a gente sabe que as pessoas têm usos completamente diferentes, tem gente que usa uma quantidade pequena, tem gente que usa uma quantidade bem maior, mas isso, claramente, não tem nada a ver com ela estar produzindo para si ou não. O que está errado nessa história é a ideia de que a pessoa que produzir ou consumir cannabis é crime. É um absurdo completo e acho que a gente deveria focar nesse cerne da questão.
A cannabis precisa ser legalizada e regulamentada – é um remédio milenar. Agora como o Brasil chega a esse consenso? Para a cannabis medicinal, esse consenso está se formando. Para a cannabis de uso adulto, e, ninguém costuma falar, mas para a cannabis de uso espiritual, que é à base de religião, a discussão não está madura. O meu ponto de vista é muito distante dessas soluções paliativas, porque eu não olho para essa questão como sendo exclusiva da cannabis. Eu tenho a mesma posição da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), da qual sou conselheiro: ser contra a guerra às drogas como um todo e a favor da regulamentação e legalização de todas as substâncias. Não existe, do ponto de vista científico, justificativa para dizer que uma substância é divina e a outra demoníaca. Substâncias fazem coisas com a gente, a gente sabe mais ou menos o que são elas e a gente pode regulamentar de maneira isonômica, dependendo se essas coisas são mais benignas ou menos. Sempre lembrando da máxima de Paracelso que a diferença entre remédio e veneno é a dose. Desse ponto de vista, passar uma regulamentação que defina um limite arbitrário de tantos gramas para dizer que uma pessoa é traficante ou usuário, me parece uma babel de ilusões. A gente está inventando confusão e dor social. A gente deveria entender que todas as substâncias precisam ser regulamentadas, têm que ter bula, indicação de grupos de risco e do que elas contêm, dose exata ou faixa de confiança.
KM: Inclusive, a sua visão sobre o uso adulto da cannabis é super interessante, de que você não recomenda esse uso para adolescentes e jovens com cérebro em desenvolvimento. A razão por trás disso refuta exatamente aquele mito de que a cannabis mata neurônios. Pode explicar um pouco sobre isso, por favor?
SR: Quando as pessoas fazem uso precoce abusivo da cannabis elas se expõem a um risco, que tem a ver com motivação, desempenho acadêmico, questões cognitivas… em vários estudos, foi possível perceber a síndrome amotivacional ligada ao consumo abusivo precoce de cannabis em adolescentes. Isso não quer dizer que todos os adolescentes que usam cannabis vão se dar mal, até porque depende do adolescente, da cannabis e de como o uso acontece, mas isso quer dizer que, a nível populacional, se uma pessoa não conhece nada, ela corre risco. Quando falamos de pessoas individualmente, tudo existe, agora quando você olha para isso epidemiologicamente, é um grupo de risco. A explicação que a ciência tentava utilizar para fazer a sua advertência é a que maconha mata neurônio e vai fazer você ficar uma pessoa cognitivamente piorada. Essa piora cognitiva não acontece para todo mundo, mas acontece a nível populacional – existe um debate sobre se é reversível ou não. Mas por que pode desempenhar esse papel deletério? Não é porque mata neurônio, a maconha promove neurogênese e as conexões entre os neurônios de novas sinapses. O THC em particular faz isso, que é muito demonizado pelos proibicionistas, mas é uma substância muito terapêutica e poderosa quando combinada com outras, como o CBD e os terpenos.
Mas qual a questão aqui sobre neurogênese e sinaptogênese? Se essas substâncias induzem isso, por que é ruim para os jovens? Eles já têm muitos neurônios e sinapses, mais do que os adultos e as pessoas longevas, e, portanto, um excesso de neurônios e sinapses pode ser deletério. Em biologia, quase sempre o equilíbrio é bom, os extremos são ruins. A gente poderia até dizer que na sociedade também. Os jovens precisam de consistência e formar repertório – antes de desorganizar, é preciso organizar. Os canabinoides ajudam sobretudo, mas o THC ajuda a desorganizar a nível de milissegundos a atividade de neurônios… isso é muito importante para tratar epilepsia e para explicar o aumento de criatividade, mas se uma pessoa tem um grande aumento de criatividade e ela nao tem repertório, ela pode se embananar, em vez de fazer uma criação bacana. No consumo adulto, as pessoas usam cannabis para correr a maratona, pintar um quadro, conversar, assistir um filme etc. Acho que a gente está em um novo momento de tirar as vendas, de olhar pra essa situação sem preconceito, de olhar para a ciência para que a gente possa fazer um bom uso da maconha para que possa ser remédio, utilizada para uso adulto, como é em tantos países, e que as pessoas do grupo de risco possam se proteger efetivamente.
Um outro exemplo: “maconha faz mal pra esquizofrênicos e causa esquizofrenia”. Maconha não causa esquizofrenia, tem vários estudos de alto nível que mostram que na verdade é o contrário: pessoas com esquizofrenia buscam a cannabis. Por quê? Porque a cannabis tem uma substância, o canabidiol, que é um antipsicótico, então, na verdade, a cannabis de alto CBD tem propriedades terapêuticas para quem tem esquizofrenia. Mas uma cannabis de alto THC, é o contrário; essas pessoas devem de fato evitar o THC. Nas pessoas de grupo de risco, essa substância pode propiciar um surto psicótico. Mas isso significa que devemos proibir o THC? Não, significa que as pessoas têm de ser informadas se elas são do grupo de risco e se tal cepa tem THC. Afinal, essas pessoas que não podem consumir THC, são as mesmas que não podem consumir álcool. E nem por isso a gente vai proibir o álcool.
KM: Você escreveu o livro “Maconha, Cérebro e Saúde”, junto do Renato Malcher-Lopes, em 2007. O que você diria que falta nesse livro, que condiz mais com a ciência atual e com o que sabemos sobre a maconha hoje? Além disso, se você fosse escrever um novo livro sobre cannabis, qual seria o tema?
SR: O livro foi publicado em 2007 pela [editora] Vieira & Lent e foi republicado recentemente pela editora Yagé. Nessa nova edição, a gente teve o luxo de ter o prefácio do meu querido amigo, João Menezes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e ele, na verdade, faz um apanhado do que o livro tem e justamente uma avaliação do que faltou, especialmente considerando o que aconteceu de lá para cá. A principal lacuna do livro, naquele momento, é a questão do efeito comitiva, que foi proposto em 1998, mas não era um assunto tão relevante. A gente mencionou duas interações importantes, entre o THC e o CBD, mas muita água passou por baixo dessa ponte desde então. De modo geral, a gente conseguiu perceber uma série de coisas que estavam no horizonte e que, com o passar desses 14 anos, se solidificaram. Um exemplo importante é o papel antitumoral da maconha, que vai além de simplesmente mitigar os efeitos adversos da quimioterapia e radioterapia.
Se eu fosse escrever um livro sobre isso hoje, eu acho que ia focar na necessidade de legalizar e regulamentar a cannabis, acoplando esse movimento e essa planta específica a uma transformação social que permita com que as pessoas vivam bem e que possa ter diminuição das desigualdades, não só de acesso a bens materiais, mas também dos imateriais. Essa desigualdade está aumentando muito, as pessoas mais ricas do planeta nunca foram tão ricas, os mais pobres nunca foram tão numerosos, ainda que a proporção esteja caindo, o número absoluto está crescendo muito. A questão do capital imaterial é igualmente problemática, existe uma desigualdade muito grande de acesso à informação e a ciência está avançando como nunca. Saberes tradicionais que são preservados até hoje são praticados por um monte de gente, falamos de alta cultura, tanto no campo da ciência quanto fora, mas a maior parte da população tem acesso a algo extremamente rebaixado e empobrecido. Seria uma coisa importante de olhar, porque [a cannabis] é uma commodity e tem condição de ser uma alavanca de transformação planetária.
KM: Falta muita informação e, principalmente na área da cannabis, falta muito dado. Mas estamos fazendo um novo relatório de mercado sobre a cannabis de uso medicinal no cenário atual do país, que vai ser lançado ainda este mês. Que tipo de dados sobre esse tema você acha importante para entender o potencial dessa indústria?
SR: Uma lista completa das doenças para as quais ela se aplica. Uma lista dos seus potenciais como nootrópico, como substância que aumenta a cognição. Uma lista das condições que ela parece prevenir, mesmo aquilo que ainda não tem base científica, mas que seja indicado para as pessoas aquilo que já tem… talvez criar um ranking de força de evidência para poder qualificar. Mas fazer um mapa amplo do que pode acontecer, sem vender gato por lebre. A evidência por epilepsia é extremamente sólida, a do câncer bem mais recente, mas está ficando sólida, a de Alzheimer está vindo aí, mas tem muita coisa para ser feita, e, se isso for medido para as pessoas com transparência, vai permitir com que elas façam as apostas de acordo com seu perfil de risco.
KM: Além das suas pesquisas com a maconha, você também é um grande estudioso do sono. Como esses dois assuntos se relacionam?
SR: Os canabinoides e endocanabinoides são muito importantes para a regulação do ciclo do sono vigília, assim como são importantes para outras funções associadas como alimentação, formação de memórias etc. Os canabinoides, em geral, facilitam a entrada de sono, mas, dependendo da dose, podem dificultar e ter o efeito deletério no sono REM, onde temos sonhos mais vivos. Então, frequentemente, quem faz uso de um canabinoide, tem dificuldade de lembrar dos sonhos. Eles têm alterações de estrutura, que não foram bem mapeadas pela ciência, mas a gente sabe que estão lá. Isso é algo a se considerar na posologia e nos horários da administração dos medicamentos. Por outro lado, os canabinoides estão entre as substâncias que melhor emulam um estado onírico, sobretudo o THC.
KM: O que é um estado onírico?
SR: Um estado de sonho. Quando você fala “quais são as substâncias que induzem o sono”, são várias, mas não é exatamente sono, é sem sonho. E quais são as substâncias que induzem algo parecido com sonhos? Os canabinoides estão entre elas, mas a pessoa não dorme, está acordada e tem uma experiência interna que tem algo a ver com a do sonho. Esse algo a ver com a experiência do sonho, em parte, se explica pela maior liberdade da associação de pensamentos durante o estado induzido pela cannabis, que é semelhante àquilo que se observa durante o sono REM. Nosso conhecimento é muito limitado, a gente conhece bem mesmo só uns dois canabinoides e tem 115 e contando. Então, tem muito para descobrir e muito artigo científico para ser feito nos próximos anos, e essa é mais uma das razões pela qual o Brasil precisa rapidamente atualizar sua legislação, porque a gente está ficando para trás.
KM: Agora, vamos falar sobre um assunto que é impossível tirar de pauta. A Covid-19. A pandemia, e não só a doença em si, também teve consequências diretas na nossa saúde. A gente nunca esteve tão ansioso. Como a cannabis poderia ajudar nesse processo e na reintegração à vida “normal”?
SR: Certamente os canabinoides têm efeitos ansiolíticos e nootrópicos importantes. Não é à toa que o consumo em vários lugares, onde se mediu, aumentou. Tem uma publicação recente mostrando o efeito positivo para a síndrome de burnout em equipes de saúde que estão completamente esgotadas. Maconha medicinal para a saúde mental é uma das revoluções da psiquiatria do século XXI em particular. As substâncias psicodélicas clássicas, ligadas ao receptor da serotonina, também são muito úteis no tratamento da depressão e do transtorno de estresse pós-traumático.
KM: O que são esses nootrópicos?
SR: Na verdade, é um nome complicado para uma coisa que todo mundo já conhece. Se você acorda de manhã e fala que precisa de um café para funcionar, você está usando o café como nootrópico. Pessoas que fumam cigarro de tabaco e sentem que ficaram mais alertas estão usando nicotina como nootrópico. As substâncias nootrópicas facilitam nossa cognição, seja porque aumentam um alerta, a aquisição de novas memórias ou melhoram sua consolidação. Um artigo mostrou camundongos jovens, adultos e idosos tratados com THC e, ao olhar para a expressão gênica desses animais, viram que os neurônios dos camundongos jovens deram uma envelhecida e passaram a expressar características de um animal idoso ou mais velho. Enquanto os animais adultos passaram a ter uma expressão gênica mais jovem. Muito interessante pensar que, em diferentes momentos, a mesma substância pode ter efeitos quase opostos e pensar, então, que a chegada da cannabis medicinal em países, como o Canadá e os Estados Unidos, é também como uma coisa que pode ampliar a cognição de pessoas que não se consideram doentes ou não estão diagnosticadas com nenhuma doença.
KM: Para terminar, você tem alguma dica ou conselho para os brasileiros que estão esperando a regulamentação da maconha?
SR: A minha dica e conselho é que procurem uma médica ou médico que possa ajudar em uma terapia canábica para tentar, se for o caso e se for possível, substituir os remédios com efeitos adversos pesados por uma terapêutica com nenhum. Em segundo lugar, que procure uma associação de pacientes no seu estado para poder fazer [o tratamento] a um preço de custo ou o mais barato possível. E, em terceiro lugar, apoiar esses movimentos com seu envolvimento, ativismo e sua energia positiva para que isso possa avançar, além de se solidarizar com as pessoas que são materialmente mais pobres e não podem ter acesso a esses medicamentos. Passar a considerar a possibilidade de, se tiver muita dificuldade de se associar, buscar um habeas corpus para fazer o plantio em casa, porque isso é possível. Muitas pessoas estão buscando esse caminho, que a justiça prevê para que o indivíduo não fique impossibilitado de fazer o tratamento. Mas não adianta a pessoa buscar um habeas corpus se ela nunca falou com um médico.