A legalização da cannabis é uma pauta cada vez mais presente no Brasil — mas se engana quem pensa que basta liberar o uso e tudo se resolve. A experiência de países como Tailândia e Estados Unidos mostra que uma regulamentação mal planejada pode causar problemas graves de saúde pública, desigualdade social e falta de controle sobre o que está sendo vendido. Neste artigo, vamos explicar por que é tão importante criar políticas públicas sólidas, que priorizem a qualidade dos produtos, a segurança do consumidor e a reparação histórica.

Políticas públicas frágeis: o que acontece quando falta regra?
Legalizar sem regras claras é uma porta aberta para o caos. A Tailândia, por exemplo, legalizou rapidamente o uso adulto da cannabis, mas não definiu regras básicas sobre:
- Idade mínima para compra;
- Limite de canabinoides nos produtos;
- Controle de pesticidas e agrotóxicos;
- Rotulagem padronizada;
- Limites de THC.
O resultado? O mercado foi inundado por produtos mal testados, com alto teor de THC e sem nenhuma garantia de segurança. Isso levou a um aumento de intoxicações, confusão entre usuários e uma possível reversão da legalização, ou seja, tem que ter muito cuidado com os problemas da legalização da cannabis.
A falta de limite de THC: um risco crescente
A ausência de um limite claro para a concentração de THC nos produtos comercializados em mercados recreativos tem gerado uma corrida pela potência. Nos Estados Unidos, por exemplo, é comum encontrar flores e comestíveis com níveis que ultrapassam 25% ou até 30% de THC.
Isso pode parecer atraente para quem busca efeitos intensos, mas representa um risco considerável, principalmente para pessoas mais sensíveis, jovens e usuários inexperientes. A exposição a níveis elevados de THC está associada ao aumento de episódios de ansiedade, surtos psicóticos, quadros de dependência e uma condição chamada síndrome de hiperêmese canabinoide.
Sem regulamentação que imponha limites razoáveis, o acesso irrestrito a produtos ultrafortes pode se tornar um problema de saúde pública.
Rótulos incompletos e sem controle: o consumidor fica no escuro
Outro problema comum na legalização da cannabis é a falta de informações claras nos produtos. Em vários estados dos EUA, é possível comprar flores, comestíveis e óleos que não trazem no rótulo:
- A concentração exata de THC e CBD;
- Quais outros canabinoides estão presentes;
- Qual o perfil de terpenos;
- Se houve uso de pesticidas ou fertilizantes químicos.
Sem essas informações, o consumidor fica perdido — e o médico, sem base para orientar um tratamento seguro.
O “green rush”: quando o lucro vale mais que o paciente
A chamada “corrida verde” (green rush) é o fenômeno da explosão de negócios após a legalização. A promessa é simples: lucrar o máximo possível com a cannabis. Mas, sem regulação, isso vira um problema:
- Empresas priorizam volume em vez de qualidade;
- Pequenos produtores são engolidos por grandes corporações;
- Os preços sobem sem controle;
- Produtos com má procedência dominam o mercado.
O resultado? Uma indústria voltada para o lucro, não para a saúde dos pacientes.
Sem reparação histórica, não há justiça
Um dos pontos mais negligenciados na legalização da cannabis é a reparação dos danos causados pela guerra às drogas. Nos Estados Unidos, diversas comunidades negras e latinas foram as mais afetadas por décadas de criminalização.
Com a legalização, seria esperado que essas populações fossem beneficiadas com acesso facilitado ao mercado, programas de capacitação e incentivos para empreenderem no setor. No entanto, o que se vê, na prática, é um domínio de grandes empresas lideradas por grupos privilegiados, enquanto os verdadeiros protagonistas da resistência seguem à margem.
No Brasil, essa discussão precisa ser central. Legalizar sem enfrentar a desigualdade histórica é perpetuar a injustiça de forma mais sofisticada.
O exemplo da Tailândia: legalizar sem planejamento pode sair caro
A Tailândia legalizou o uso da planta em 2022, tornando-se o primeiro país da Ásia a liberar a cannabis. A iniciativa parecia ousada, mas foi feita sem regras claras, o que levou a:
- Proliferação descontrolada de lojas de cannabis;
- Vendas para menores de idade;
- Aumento de hospitalizações por uso indevido;
- Falta de regulamentação para rotulagem e origem dos produtos.
Em 2024, o governo anunciou que pretende reverter a legalização e voltar a proibir o uso adulto da planta — um retrocesso causado pela falta de planejamento.
O que podemos aprender com os EUA?
Nos Estados Unidos, cada estado tem sua própria legislação. Alguns (como Califórnia e Colorado) criaram modelos mais robustos, com:
- Controle de qualidade e rastreabilidade;
- Limites para THC;
- Regras para publicidade;
- Inclusão de grupos sociais historicamente afetados.
Outros estados, no entanto, abriram o mercado sem critérios claros. O resultado é que a maioria das licenças vai para grandes grupos econômicos, e os preços continuam altos — afastando o público que mais precisa da planta.
Para saber mais sobre os diferentes tipos de produtos, veja também: Como identificar um produto de cannabis regulamentado pela Anvisa
O que seria uma boa regulamentação no Brasil?
Legalizar bem feito é possível. Para isso, o Brasil precisa garantir:
- Controle de qualidade rigoroso;
- Rastreabilidade da produção;
- Limite de canabinoides (principalmente THC);
- Rótulos completos e padronizados;
- Preço acessível;
- Inclusão social e racial na cadeia produtiva;
- Programas de capacitação profissional;
- Apoio às associações de pacientes;
- Incentivo à pesquisa científica.
Segundo o Anuário da Cannabis Medicinal 2024, 1 em cada 3 pacientes brasileiros é atendido por associações. Ignorar esse grupo seria uma falha grave.
Legalizar, sim — mas com responsabilidade
Legalizar a cannabis não é só liberar o uso. É criar um sistema justo, seguro e eficiente. E, para isso, o Brasil precisa aprender com os erros de outros países.
Se quisermos um modelo que funcione de verdade, que priorize a saúde pública, combata desigualdades e impulsione o setor com responsabilidade, precisamos:
- Regulamentar com base na ciência;
- Garantir reparação histórica;
- Colocar o paciente no centro da discussão.
A legalização é um caminho sem volta. Mas a forma como ela será feita é o que vai definir se teremos um avanço ou apenas mais um problema para resolver.


