Marco Algorta fala sobre a indústria da cannabis no Uruguai

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Em entrevista à Kaya Mind, fundador da Cannapur, Marco Algorta traz uma visão uruguaia acerca da regulamentação da cannabis e dos mercados que foram e ainda podem ser impactados

Hoje, a regulamentação da cannabis vem tomando proporções significativas em diversas nações pelo mundo. O Uruguai, no entanto, foi o primeiro país a legalizar o uso adulto da cannabis, em 2013. Depois de 8 anos da regulamentação, as mudanças a respeito da planta continuam acontecendo em território uruguaio, mesmo que a passos lentos, e possibilitam o surgimento de novas oportunidades. 

Em entrevista à Kaya Mind, o uruguaio Marco Algorta, fala sobre a indústria da cannabis no país vizinho, a atual legislação e o movimento nos mercados empresarial e profissional. Formado em Letras, Algorta trabalha com o setor desde 2014 – foi proprietário de growshops, fundou e auxiliou a criação de diversos clubes canábicos, criou a Cannapur, empresa comprada pela canadense Khiron, em 2019, onde atua como gerente de relações públicas, e é atual presidente da Cámara de Empresas de Cannabis Medicinal del Uruguay. Confira a conversa completa: 

Kaya Mind: No nosso papo inicial, você contou para a gente como foi o seu começo no mercado da cannabis. Mas você pode contar um pouco agora de novo? 

Marco Algorta: Claro. Na verdade, eu comecei por curiosidade. Eu usava cannabis, o famoso prensado que tem gente que continua usando, e uma época comecei a tirar umas sementes e germinar. Percebi que dava para colher e que dava flor, e comecei a usar essa cannabis. Apareceu, então, a oportunidade de fazer um mestrado na Espanha. Lá, eu precisava de uma grana extra; eu tinha uma bolsa e dava aula na faculdade de literatura latinoamericana, mas obviamente o dinheiro não era suficiente para ter uma vida confortável. Consegui um trabalho em um clube canábico em Madrid e comecei a perceber que existia um enorme potencial. Quando voltei para o Uruguai, em 2013, a lei começou a adquirir uma velocidade, sobretudo por um problema de segurança pública. Em agosto de 2013, aconteceu algo super simbólico: na principal esquina de Montevidéu, no restaurante mais emblemático da cidade, o caixa foi assassinado a sangue frio com um tiro na cabeça. Eram 8h da noite. A filmagem dessa cena passou em todos os canais, gerou um grande debate, então, o Mujica anunciou as medidas para o controle da violência e pela segurança pública. Uma das medidas era a regulação do mercado de cannabis para acabar com o narcotráfico. É por isso, na verdade, que a cannabis teve essa legislação aprovada em dezembro de 2013. Em seguida, eu vi uma oportunidade, fui atrás de um know-how, fiz contatos e abri um growshop. Mas, para ter um comércio, tinha que ser muito organizado e não era meu caso, então comecei a criar clubes canábicos, porque o que eu sabia era plantar. 

A ideia por trás desses clubes é muito romantizada, mas tem que trabalhar para caramba. Eu tinha um modelo mais profissional de trabalho, que a gente foi aplicando nos clubes e foi crescendo. Até hoje, continuo com essa administração dos clubes canábicos, mas eu passei a armar uma empresa de cannabis medicinal, que virou a Khiron. Depois, eu entendi a importância de organizar o setor privado do Uruguai – tinha muita gente querendo fazer coisas e tudo era demorado –, então, a gente ordenou esse setor e fui eleito o presidente da Cámara de Empresas de Cannabis Medicinal del Uruguay. Hoje, sou o porta-voz das reclamações e também de mostrar para a opinião pública a oportunidade sanitária,  econômica e de desenvolvimento que pode trazer uma indústria como essa para o país. 

KM: Foi muito legal você contar um pouco sobre como foi esse começo, até porque eu queria entender como foram esses primeiros dois anos da regulamentação da cannabis no Uruguai, pensando nesse viés de mercado, se teve uma grande agitação por parte dos investidores nacionais e estrangeiros para impulsionar novas empresas.

Marco Algorta: O começo foi um grande caos na verdade, porque a gente acha que com uma lei está tudo resolvido, mas ela é o começo dos problemas – mesmo que legais. Você tem que gerar um monte de regulação depois de uma lei, afinal, existe todo um sistema jurídico que foi feito para proibir operações. Então, desarticular tudo isso não é de um dia pro outro, é um trabalho de micromanagement. No começo, houve um grande interesse, veio muito investidor de fora querendo investir no Uruguai, mas eles percebiam que não existia nada, só tinha uma lei, mais nada. Depois, em 2014, começam a sair os primeiros decretos regulatórios da lei, mas eram feitos sob uma visão muito dogmática. Dessa forma, você está prejulgando algo antes de entender como funciona. Era uma chuva de investidores, mas que não conseguia uma licença. O Estado não estava organizado para poder absorver isso e, assim, perdeu um monte de possibilidades de investimentos rápidos e de grande impacto. É algo super importante do Brasil perceber – existe uma luta pelo PL 399, mas não vai resolver tudo, é só o primeiro passo. 

KM: Com certeza, você acabou de adiantar minha próxima pergunta, que era se você via esse mesmo problema acontecendo no Brasil. Afinal, é justamente o que acontece em grande parte do mundo; discute-se a lei durante muito tempo, mas pouco a sua aplicabilidade. 

Marco Algorta: Eu vejo no Brasil todo mundo querendo fazer a lei perfeita, como se existisse a perfeição – a perfeição não é um lugar onde você chega, é um caminho. Mais importante do que a lei perfeita, é fazer a primeira lei. Pensemos que o paradigma proibicionista, que começou em 1907 com as primeiras conferências sobre o ópio em Xangai, levou 80 anos para ser construído. A desconstrução desse muro também não é de um dia pro outro, é tijolo por tijolo. A queda do paradigma proibicionista está acontecendo, a pergunta já não é mais se sim ou não, mas como e quando, só precisar dar tempo ao tempo. Desconstruindo aos poucos, você pode gerar a opinião pública necessária. Temos que gerar essa primeira lei para começar a normalizar o uso, para depois ter novos avanços.

KM: Com todas as críticas ao PL 399, ele contempla um primeiro passo, um marco regulatório para que esse assunto passe a ser discutido. Mas como que hoje, no Uruguai, funciona a compra de empresas locais? Seja por parte de uma empresa estrangeira, por exemplo, tem alguma lei específica para a cannabis ou acaba acontecendo como em outros mercados? 

Marco Algorta: Na verdade, a gente é regulado financeiramente pelos Estados Unidos. Isso quer dizer que todos os bancos uruguaios sempre tem um corresponsabilidade em Nova Iorque, então quando a gente faz uma merge ou uma acquisition você tem que fazer tudo por fora do sistema bancário uruguaio. Eu tenho uma conta na Suíça e outra no Canadá, e você tem que gastar uns 5 a 6% do negócio para gerar uma estrutura financeira capaz de operar essa organização. Nada é fácil na indústria da cannabis, é a mais regulada do mundo – é uma enorme oportunidade, mas vamos começar pelo problema. É tudo muito difícil, cada coisa que você quer fazer, você tem que inventar o caminho das pedras. Está tudo por fazer e essa é a grande possibilidade das empresas brasileiras, porque o Brasil tem uma vantagem enorme por ser sempre o país do futuro. Com a cannabis, essa história está se repetindo. Além disso, o Brasil é muito conhecido no mundo por sua indústria farmacêutica. Tem um potencial mercado interno e certificações internacionais que podem fazer com que produtos brasileiros se insiram rapidamente em outros mercados. 

KM: É nosso sonho que o Brasil seja cada dia mais rápido essa potência. O nosso último relatório justamente explora esse impacto econômico que a cannabis teria no país quando regulamentada. Eu sei que provavelmente funcionaria de outra forma no Brasil, mas tem alguma diferença na regulamentação uruguaia se o produto é medicinal, industrial ou para uso adulto? E essa parte de tributação é uma preocupação dos empresários do ramo?

Marco Algorta: Acho que hoje em dia não é uma preocupação, porque a gente ainda não está nesse momento de ajustar o custo. É tão grande o potencial do mercado que o principal inimigo não é a rentabilidade e, sim, poder abrir mercados e gerar demanda, mas não só isso, conseguir alcançar esse potencial que existe. Existe tanto para crescer, que hoje em dia não é um problema. A grande discussão é a flexibilidade dos governos para poder atingir rapidamente essa demanda submersa que existe. No Canadá, por exemplo, o grande problema não é ganhar mercado, é conseguir, por meio de outros produtos regulados, diminuir o mercado ilícito, porque quando você tem uma indústria regulada, você abre um monte de possibilidades para projetos que precisam estar fora da regulação. Quando você flexibiliza isso, é preciso fazer uma regulação que permita o acesso. Esse equilíbrio é super complicado de conseguir, é muito difícil negociar com autoridades – volto a dizer, eles sempre tem uma visão muito dogmática do assunto –, mas não é um problema impositivo agora, a questão é o go to market, ou seja, chegar no cliente final.

KM: Como que você enxerga, ao longo desses anos, a preocupação dos empresários e como é o mercado da contratação de mão de obra especializada para esse trabalho de cannabis? A gente vê que, mundo afora, existe um grau de dificuldade de conseguir pessoas e trabalhadores qualificados na área. Além disso, quanto mais o mercado amadurece, mais qualificações são exigidas. 

Marco Algorta: Isso é um grande desafio para qualquer indústria que está começando. No início, você conseguia trazer alguns profissionais, mas claro que existe muito preconceito, então, muitas vezes, tinham bons profissionais com bons salários que, mesmo assim, não aceitavam vir para a indústria porque achavam que acabariam presos. Muita gente vinha da ilegalidade e passou a estudar para se profissionalizar. Mas isso tem mudado bastante, hoje em dia já estamos falando de um mercado que é 70 vezes menor que o brasileiro. Estamos falando de 5 mil pessoas que hoje trabalham na indústria de cannabis do Uruguai, e isso equivaleria a 350 mil pessoas no Brasil. No Uruguai existe, por meio do Ministério do Trabalho, os conselhos de salário – cada atividade tem o seu laudo. Para a cannabis, não tinha uma categoria específica e o Ministério do Trabalho estava pedindo para isso ser gerado, ou seja, pedindo para a gente formar um grupo de trabalhadores da cannabis. Isso é super simbólico, tem um peso grande, é um sinal de como a especialização do trabalho da cannabis está acontecendo. O Uruguai ainda tem de melhorar nos intercâmbios de conhecimento com outros países mais avançados. Precisamos, sobretudo, gerar um encontro entre dois mundos, se alimentando da contracultura e do mundo acadêmico. É aí onde moram as verdadeiras oportunidades. 

KM: É até curioso você ter falado esse número de 350 mil trabalhos no Brasil. No nosso relatório de impacto econômico da cannabis, a gente chegou em números muito parecidos do potencial da força de trabalho. É uma força que se compara com o número de dentistas, de enfermeiros e até de médicos, que são 500 mil no país. É muito expressiva.

Marco Algorta: Isso é só uma parte do bolo, porque existe muito spinoff que sai a partir da indústria canábica. Por ser disruptiva e super dinâmica, vai gerar spinoff, que vão se conectar com outras indústrias. É difícil quantificar, mas não são só essas 350 mil pessoas, é tudo que impacta em outros ecossistemas empresariais. O que a gente está contando aqui é só metade da história.

KM: São empregos diretos e os satélites, gerados por meio do nascimento dessa nova economia. No Brasil, isso impactaria uma série de níveis, porque você tem parte dos trabalhos que estão na mão de trabalhadores ilegais, então, como fazer essa transição? Quando você tem um mercado legal, você exige um profissional que tenha certos skills. Se você não tem um programa de reparação que introduza essas pessoas nesse mercado legal, você acaba criando um gap para onde essas pessoas acabam indo. 

Marco Algorta: Essa dívida com o mundo proibido de antes continua existindo, são poucas as pessoas que conseguiram passar da ilegalidade à legalidade. Se você pensar nos EUA, são poucas as licenças de cultivo de cannabis dadas às pessoas negras, por exemplo, e eles, na verdade, são quem mantiveram e trouxeram o cânhamo, se falarmos da origem da cannabis na América Latina. Existe uma grande dívida nesse sentido, porque você passa um preconceito social e econômico, que não é só relacionado ao uso de substâncias controladas. Tomara que a gente entenda a indústria da cannabis não só como uma indústria do trabalho, mas como o poder transformador de possibilitar a integração de uma parte da população que sempre foi discriminada.

KM: Voltando um pouco na parte do mercado de trabalho, o que o profissional que quer empreender ou trabalhar no setor de cannabis precisa buscar para ter um diferencial ou conseguir se introduzir de uma maneira mais fácil e com menos preconceitos? 

Marco Algorta: Por mais que eu tenha um bom tempo de história na indústria, eu só sei que não sei nada; quanto mais eu aprendo, mais eu percebo tudo que tem para aprender. O mais importante é não entrar com a cabeça tão cheia de coisas. É justamente o contrário: a gente tem que estar com ela muito vazia. Deixar muito espaço pra criatividade. Tem que vir aprender, essa é a principal característica de um bom trabalhador dentro da cannabis. 

KM: Temos que ser desapegados para trabalhar com a cannabis, porque mesmo quem estuda na academia, está descobrindo coisas novas. A falta do proibicionismo nos permite estudar e estudar nos permite aprender.

Marco Algorta: Normalizar a cannabis é a forma de avançar e de gerar acesso às pessoas que realmente precisam de cannabis. A luta é sempre por isso.

KM: Como você sente que está a educação da sociedade em relação à cannabis? Com quase 8 anos de regulamentação no Uruguai, você tem sentido esse ponteiro virar?

Marco Algorta: As mudanças são graduais. Eu volto a dizer, foram muitos anos de proibicionismo, que é um parêntesis na história da humanidade, um lapso. As culturas e civilizações sempre usaram essas substâncias controladas, mas de forma espiritual, cerimonial, medicinal. O preconceito ficou ligado aos aspectos culturais, foi uma maneira de demonizar algumas minorias, de estabelecer um modelo patriarcal de homem branco. Mas isso está mudando, a cannabis gera um monte de soluções ou alternativas a alguns problemas de saúde mental de uma forma muito mais natural do que outras drogas. De novo: a pergunta não é mais se sim ou não, a pergunta é quando e como. A cannabis vai ser normalizada. É uma história que não depende da política, depende da educação do povo e da liberdade. Obviamente que se houvesse políticas públicas de incentivo, tudo funcionaria melhor. É quase um consenso total da sociedade que está sendo negado pela política do Brasil por causa dos interesses que articulam de forma eficaz em Brasília, mas deveríamos exigir que a política partidária transforme os consensos da sociedade em políticas públicas. 

KM: Você tem algum conselho para quem está empreendendo no mercado de cannabis ou para quem está tentando mudar essa política no Brasil? 

Marco Algorta: Eu acho que a indústria da cannabis é difícil, é hiper regulada, é mais complicada do que parece. Não é fácil, mas não conheço ninguém que seja suficientemente teimoso que não tenha dado certo nela. Tenha resiliência; se apanha muito, tem muito preconceito, você sofre um pouco, mas chega lá. A oportunidade realmente existe e é enorme. Eu sou pai de cinco filhos, e dou de comer para todos eles com dinheiro da indústria da maconha. O empreendedor de cannabis tem que ter outra mentalidade –  não podemos ser super capitalistas, acho que temos que ser focados em eficiência, mas temos que ter um jeito mais relaxado de aceitação. Os que melhores se dão são os que fazem o caminho do meio: não sejam super caretas, mas não sejam hippies. Tente conectar os dois mundos. As derrotas virão, mas a vitória é uma certeza, então muita resiliência, muita tranquilidade e aguente. Queria falar, também, que esse tipo de espaço que a Kaya Mind está abrindo acelera as políticas públicas. Ainda bem que existem empresas privadas com incidência política e projetos como esse são os que permitem gerar material e argumentação sólida para defender posturas. Parabéns, eu acho maravilhoso que estejam acontecendo essas ideias de por no papel, de realmente ordenar, classificar informação – é fundamental para a gente. 

KM: Muito obrigado, Marco. Ouvir essas palavras de alguém como você é uma validação e uma chancela muito grande do que a gente tenta trazer todo dia. Sabemos que, como você falou, é um desafio diário. A Kaya é muito recente, mas a gente quer produzir algo para o longo prazo pensando em fomentar esse setor. Além disso, a gente olha para o nosso vizinho, mesmo 70 vezes menor, com muito carinho. Temos muito a aprender e eu vejo uma receptividade muito grande da parte de vocês. De alguma forma, os dois países [Uruguai e Brasil] podem se potencializar. 

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