O Brasil vive um marco histórico com relação à regulamentação da cannabis. Em setembro de 2025, a Anvisa e a União protocolaram no Superior Tribunal de Justiça (STJ) um pedido de prorrogação de 180 dias para regulamentar o cultivo de cânhamo industrial (hemp) com até 0,3% de THC, destinado a fins medicinais e farmacêuticos.

Esse pedido acontece no contexto do Incidente de Assunção de Competência (IAC 16), no qual o STJ reconheceu que o cânhamo não pode ser considerado droga ilícita e determinou que União e Anvisa elaborassem, em seis meses, normas claras para o plantio, processamento e comercialização da planta para uso medicinal.
Enquanto isso, o país segue em um cenário fragmentado: associações de pacientes que conseguiram autorizações judiciais cultivam cannabis para produção de óleos medicinais; pacientes em geral dependem de importações caras; e empresas aguardam segurança jurídica para investir na produção nacional.
Linha do tempo da regulamentação da cannabis no Brasil
- 2015 – Anvisa edita norma que autoriza a importação de produtos à base de cannabis mediante prescrição médica (primeira abertura regulatória).
- 2017 – Cresce o número de pacientes com autorizações individuais para importação.
- 2019 – A Anvisa aprova a RDC 327, regulamentando a venda em farmácias de produtos à base de cannabis, mas sem cultivo nacional. No mesmo ano, o então presidente da agência, William Dib, tenta avançar com a regulamentação do plantio medicinal, mas sofre forte oposição política e o tema é arquivado.
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- 2019 em diante – O PL 399/2015, de autoria do deputado Fábio Mitidieri, ganha força no Congresso, propondo a regulamentação do cultivo para fins medicinais e industriais. Apesar de debates intensos, o projeto nunca foi votado em definitivo.
- 2020–2023 – Cresce a judicialização: pacientes e associações recorrem à Justiça para cultivar e produzir óleos. Estados começam a aprovar leis próprias para garantir acesso pelo SUS.
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- Novembro/2024 – O STJ, no IAC 16, decide que o cânhamo industrial não é proscrito e determina que União e Anvisa regulamentem o cultivo em até seis meses.
- Fevereiro/2025 – União e Anvisa pedem ampliação do prazo para 12 meses, mas o STJ nega.
- Maio/2025 – A União apresenta o Plano de Ação para regulamentar a cadeia, incluindo associações, laboratórios públicos e setor agrícola.
- Setembro/2025 – O prazo expira sem conclusão. União e Anvisa pedem mais 180 dias ao STJ.
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Como foi o processo até aqui: avanços e entraves
A trajetória da cannabis medicinal no Brasil é marcada por avanços regulatórios pontuais, mas também por forte resistência política. A primeira grande virada aconteceu em 2015, quando a Anvisa autorizou a importação de produtos à base de cannabis mediante prescrição médica, em resposta à pressão de famílias de pacientes com epilepsia refratária e a decisões judiciais que já vinham garantindo esse acesso.
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Anos depois, em 2019, o então presidente da Anvisa, William Dib, tentou avançar ao pautar a regulamentação do cultivo medicinal, propondo que empresas pudessem plantar cannabis em território nacional para abastecer farmácias e reduzir a dependência da importação. A iniciativa, porém, enfrentou forte oposição de setores conservadores e acabou arquivada.
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No Legislativo, o Projeto de Lei 399/2015 buscou estabelecer um marco regulatório mais abrangente, incluindo tanto o cultivo para fins medicinais quanto o cânhamo industrial. Embora tenha tramitado por anos e recebido apoio de entidades médicas, científicas e de pacientes, o projeto nunca foi aprovado em definitivo, travado por disputas políticas.
Nesse vácuo regulatório, foram as associações de pacientes que assumiram protagonismo: entidades como a ABRACE Esperança, Apepi, Santa Cannabis, e outras associações recorreram à Justiça e conquistaram salvo-condutos para cultivar a planta e produzir óleos medicinais. Atualmente, mais de 40 associações possuem autorizações judiciais, atendendo coletivamente mais de 200 mil pacientes em todo o país.
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Esse histórico ajuda a entender por que o STJ precisou intervir em 2024: sem regulamentação, o Brasil viveu uma explosão de judicialização, com aumento de mais de 8.000% nos pedidos no tribunal, entre janeiro de 2018 e agosto de 2024 relacionados à cannabis medicinal.
Como está o momento atual e o que pode mudar nos próximos meses
Hoje, o cultivo de cannabis medicinal é permitido apenas a associações de pacientes com autorização judicial. Pacientes em geral continuam dependentes da importação (via RDC 660/2022) ou de produtos registrados em farmácias (via RDC 327/2019).
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Nos próximos meses, caso o STJ aceite o pedido da União, deve ocorrer:
- abertura de consultas públicas com participação da sociedade civil;
- sistematização das contribuições para elaborar a minuta regulatória;
- votação final na diretoria colegiada da Anvisa até março de 2026.
Quem será mais afetado com a regulamentação da cannabis medicinal
- Pacientes: terão maior acesso a medicamentos com custos reduzidos, já que o cultivo nacional deve baratear a cadeia de produção.
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- Associações de pacientes: embora fundamentais no acesso atual, ainda não estão plenamente incluídas na proposta regulatória. O Plano de Ação da União reconheceu sua importância (estima-se que 90 mil pacientes hoje dependam delas), mas o modelo final segue incerto.
- Médicos: terão mais opções terapêuticas, maior variedade de produtos e possivelmente maior segurança regulatória.
- Empresas e indústria farmacêutica: poderão investir em produção local, reduzindo a dependência da importação e fortalecendo o Complexo Econômico-Industrial da Saúde.
- Governo: reduzirá custos com judicialização e importação, além de ganhar instrumentos de fiscalização mais claros.
Os próximos passos da regulamentação da cannabis medicinal
De acordo com o cronograma apresentado na petição de setembro/2025:
- Outubro/2025 – início da participação social;
- Janeiro/2026 – consolidação das contribuições e minuta regulatória;
- Março/2026 – deliberação da diretoria da Anvisa e publicação da norma.
Paralelamente, o Plano de Ação da União já previa etapas adicionais, como adequações fitossanitárias (MAPA), inclusão de laboratórios públicos (como LAFEPE e TECPAR), integração de cooperativas agrícolas e diálogo com saberes tradicionais e comunidades.
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Além disso, o MAPA já deu um passo chave no cronograma regulatório ao publicar, em 30/07/2025, a Portaria SDA/MAPA nº 1.342, que fixa as regras fitossanitárias para a importação de sementes de Cannabis sativa. A norma exige Certificado Fitossanitário do país de origem com declarações de ausência de pragas específicas (como Grapholita delineana e Ditylenchus dipsaci), inspeção na entrada no Brasil e análises laboratoriais às custas do importador. Se houver detecção de praga quarentenária, a carga pode ser rejeitada ou destruída, e o país de origem pode ter as importações suspensas temporariamente. O texto deixa claro que essas exigências não substituem outras obrigações legais ligadas à Cannabis sativa. A portaria integra o Plano de Ação federal para viabilizar o cultivo de cânhamo medicinal, com data-alvo até 30/09/2025, enquanto o Ministério da Saúde conduz, até 15 de agosto, uma consulta diretiva com especialistas e sessões públicas para amadurecer a minuta de portaria sobre produção e acesso a derivados de cannabis para uso exclusivamente medicinal.
Como ficam as regulamentações já existentes para fins medicinais
Enquanto não avançamos na regulamentação do cultivo da cannabis no Brasil, seguem em vigor:
- RDC 327/2019 – regula produtos de cannabis industrializados em farmácias (já há mais de 90 aprovados).
- RDC 660/2022 – permite importação de produtos por pacientes mediante prescrição médica.
- Decisões judiciais – permitem cultivo a associações, que hoje atendem dezenas de milhares de pacientes.
Esses instrumentos garantem o acesso atual, mas mantêm preços altos e desigualdades no acesso, além de perpetuar o excesso de judicialização.
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O que pode acontecer com o uso industrial e recreativo
- Uso industrial: o STJ delimitou o tema ao medicinal e farmacêutico. O cultivo para fibras têxteis, cosméticos e alimentos ainda depende de debate futuro. O Plano de Ação da União reconhece o interesse do setor agrícola e industrial, mas não contemplou esse ponto de imediato.
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- Uso recreativo: segue proibido no Brasil. Apesar do avanço em países como Alemanha, Canadá, Uruguai e alguns estados dos EUA, não há no curto prazo expectativa de debate regulatório para o uso adulto.
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A regulamentação da cannabis medicinal no Brasil entrou em fase decisiva. O pedido da Anvisa e da União por mais prazo mostra a complexidade técnica e política do tema, mas também revela a urgência de uma resposta clara para pacientes, médicos e empresas.
O Plano de Ação apresentado em maio de 2025 apontou caminhos importantes — incluindo o papel das associações, laboratórios públicos e até saberes tradicionais. Porém, a falta de regulamentação até agora mantém o país dependente da judicialização e da importação.
Se a norma for aprovada em 2026, o Brasil poderá dar um passo significativo para reduzir desigualdades no acesso à saúde, fortalecer sua indústria farmacêutica e alinhar-se às tendências internacionais.
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