A descriminalização da maconha, no Brasil, tem sido um tema de intenso debate e controvérsia. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma decisão histórica ao descriminalizar o uso pessoal dos derivados da planta, o que representa um passo significativo na política de drogas do país.
Essa medida reflete, ao menos formalmente, uma mudança de paradigma, afastando-se da abordagem punitiva e discriminatória que por décadas criminalizou usuários, especialmente aqueles de comunidades marginalizadas. A decisão do STF representa um reconhecimento dos fracassos da guerra às drogas e uma tentativa de reduzir os danos associados ao uso adulto e recreativo da cannabis, promovendo uma perspectiva mais focada na saúde pública e nos direitos humanos.
Contexto histórico da proibição da cannabis
No século XX, muitos países decidiram iniciar uma guerra contra o uso de determinadas substâncias. Elas não foram escolhidas com base em critérios científicos relacionados aos riscos reais à saúde, e a prevalência constante de seus usos ao longo dos milênios foi simplesmente ignorada de forma ingênua e irreal.
Enquanto algumas dessas substâncias mantiveram sua legalidade, possibilitando o surgimento de cadeias produtivas bilionárias intrinsicamente ligadas aos poderes públicos, outras foram selecionadas como a principal desculpa criminalizante para permitir a contenção discriminatória de camadas específicas da população, notadamente pessoas negras e pobres às margens da sociedade. A guerra às drogas sempre foi uma justificativa para legitimar uma guerra contra determinadas pessoas.
Com o passar dos anos, a falência dessa estratégia se torna cada vez mais evidente. Em vez de reduzir o uso, as proibições apenas levaram ao surgimento de versões mais potentes e concentradas das substâncias, como forma de o mercado se adaptar à ilegalidade, muitas vezes até aumentando o número de usuários. A proibição amplifica os riscos e as chances de que os usuários se tornem dependentes e dificulta a busca por ajuda e cuidados.
Por conta disso, muitos países e gestores públicos têm optado por alterar as formas de lidar com os usos problemáticos de substâncias que geram adicção, adotando abordagens pautadas pela redução de danos com foco na saúde pública. Nesse sentido, alinha-se também a decisão do Supremo Tribunal Federal de descriminalizar o uso da maconha no Brasil.
O que significa a descriminalização?
A descriminalização não é mais do que o estabelecimento, por meio de decisão judicial ou legislativa, de que certa conduta não é mais crime. Porém, o fato de não ser crime não significa que a conduta deixará de ser repreendida e ter consequências negativas. No caso da descriminalização da maconha, o uso da planta continua a ser considerado uma atitude ilícita, mas não pode mais acarretar prisão privativa de liberdade.
Entenda nesse texto a diferença entre a descriminalização e a legalização da maconha
O que muda após a votação do STF à favor da descriminalização da cannabis?
Em meio a tantas notícias e matérias sobre o tema, surgem dúvidas comuns entre entusiastas e usuários de cannabis. Separamos abaixo algumas das principais perguntas que surgiram após a decisão do STF favorável à descriminalização da maconha no Brasil.
- Vou ser preso por fumar maconha?
Depende. O ato em si de fumar a maconha não pode mais levar ninguém à prisão, porém, na prática, a realidade não é tão simples. Isso ocorre porque as forças de segurança não deixarão de realizar abordagens seletivas e ainda poderão tentar trazer outros elementos à tona, além do ato de fumar, como forma de enquadrar os usuários como traficantes.
A partir de hoje, os usuários, principalmente aqueles que costumam sofrer mais com os preconceitos e o racismo de alguns maus policiais, devem estar cientes de seus direitos e se precaver para não oferecer nenhum tipo de prova de mercancia e comercialização quando estiverem portando sua maconha para uso pessoal.
Mesmo assim, pelo menos durante os próximos meses, até que se estabeleçam novos ritos processuais, os usuários devem se preparar para continuar sendo constrangidos em sua liberdade de ir e vir, uma vez que ainda podem ser levados à delegacia, onde diversos tipos de abusos podem ocorrer, como sermões moralizantes, tratamentos desrespeitosos, longas esperas e humilhações.
Ao mesmo tempo, a presunção de usuário para quantidades maiores que 40 gramas foi comprometida, e as compras de quantidades acima desse limite para se usar por mais tempo e realizar menos compras estão sob risco de ser enquadradas como tráfico. Para evitar riscos, os usuários provavelmente terão que comprar mais vezes se relacionando mais com o mercado ilegal porque a quantidade escolhida foi menor do que é estabelecido em outros lugares do mundo; em Nova Iorque, por exemplo, a quantidade escolhida foi de 85 gramas.
Outra possibilidade além do acesso ilegal e que pode ganhar adesão após essa decisão é o auto cultivo para consumo próprio, respeitando o limite de 6 plantas fêmeas, mesmo que isso ainda acarrete riscos de denúncias e apreensões.
Comprar e portar quantidades obviamente menores que 40 gramas para evitar pesos próximos ou levemente maiores que essa margem é uma forma de precaução, uma vez que, em casos de peso menor que o permitido, é obrigação dos policiais apresentarem provas de que você tinha intenção de vender, e, caso isso não ocorra, eles não poderão efetuar a prisão preventiva em flagrante.
Tirar fotos e registrar vídeos da quantidade e peso que você tem em posse naquele dia e salvar em local que os policiais não possam acessar pode, talvez, ajudar a contrapor eventuais provas implantadas ou falsificações nas pesagens em caso de enquadramento de má-fé como tráfico. De qualquer forma, somente após o surgimento dos próximos casos reais é que será possível pensar em táticas mais efetivas de se comprovar o uso.
- Qual a quantidade máxima de maconha que posso portar?
Até que sobrevenha nova lei ou regulamentação, a quantidade máxima que pode ser portada é 40 gramas ou 6 plantas fêmeas. As especificações quanto à produtividade das plantas e a posse da erva seca em conjunto com o cultivo não foram detalhadas pelo STF e podem acarretar prisões. Espera-se que o poder judiciário saiba interpretar essas contradições em favor dos usuários para que, com o tempo, as forças de segurança desistam de abordar situações limítrofes de uso e possam focar em descobrir quem são os negociadores de grandes quantidades ligados ao crime organizado.
- Agora é permitido plantar?
O auto cultivo de até 6 plantas fêmeas não é mais crime, porém elas podem eventualmente gerar mais de 40 gramas e, nesse caso, ultrapassar o limite e justificar prisões arbitrárias. Essa contradição não está resolvida e ainda deverá gerar diferentes interpretações por parte dos delegados e juízes. De qualquer maneira, evite qualquer situação que configure possível comércio porque, mesmo que você plante apenas 6 plantas para uso, ainda existe o risco de denúncia para que a polícia entre em sua casa e verifique o que está ocorrendo, inclusive apreendendo suas plantas.
- Agora é permitido fumar na rua?
Não, é melhor fumar na calçada. Brincadeiras à parte, o julgamento do STF explicitou que o uso em locais públicos não é permitido, o que gera novas contradições, uma vez que já existem regras para locais onde é ou não permitido fumar e isso foi simplesmente ignorado para quem fuma maconha. Os usuários terão que demandar seu direito de usar em locais que também permitem outros fumígenos, enquanto isso, evite problemas e prefira locais privados e seguros.
- Isso muda alguma coisa para o uso medicinal?
Infelizmente, a decisão do STF não levou em consideração quem faz o auto cultivo para uso medicinal. Inclusive, uma vez que o uso medicinal demanda maior quantidade de plantas, porque a extração necessita de bom volume vegetal para gerar pequena quantidade de óleo, a decisão pode atrapalhar e dificultar a vida de quem planta para produzir seu próprio extrato terapêutico.
Caso você faça esse tipo de uso, busque orientação jurídica para obter um Habeas Corpus, ande com sua receita médica em caso de transporte e salve provas de que seu uso e cultivo têm finalidade exclusivamente medicinal. Por conta dessa omissão, a necessidade de buscar na justiça o direito de cultivar para sua própria saúde tende a continuar e aumentar no país.
Quando realmente a descriminalização da maconha começa a valer?
A decisão terá efeitos com o trânsito em julgado a partir da publicação oficial da tese de repercussão geral. Aguarde alguns dias até que essa publicação ocorra e não se empolgue achando que usar em qualquer lugar não vai ter consequências indesejáveis.
Como a votação a favor da descriminalização da maconha influencia a “PEC das Drogas” (PEC 45/2023)?
A votação no STF não guarda relação direta com os trâmites da PEC 45/2023. Por mais que o STF tenha citado, durante a leitura dos votos, que uma eventual lei ou projeto de emenda à constituição que venha a criminalizar o uso poderá ser declarada inconstitucional pelos mesmos motivos da decisão atual, isso somente ocorrerá após aprovação do projeto ou proposta e eventual judicialização da mesma.
Possível aprovação dessa PEC ou de outros Projetos de Lei pode alterar completamente o cenário atual e os usuários e o mercado que gira em torno do uso devem estar atentos a isso.
No momento, o projeto atual passará por algumas comissões e não deve andar rapidamente, ainda mais por conta das eleições municipais que se aproximam. Os debates na Câmara podem ser proveitosos para aprofundar o assunto e buscar possíveis consensos sobre como regulamentar o uso da maconha.
Por mais reacionário que seja o projeto, agora que o STF finalizou o julgamento, os movimentos pró-cannabis podem aproveitar as audiências públicas para trazer à tona as demandas que ainda não foram solucionadas pela decisão, esclarecendo e informando melhor a opinião pública sobre como tratar o tema de forma saudável e racional.
O futuro do cenário: o que pode acontecer após a decisão?
O mercado da maconha no Brasil não foi legalizado e ainda não poderá movimentar grandes plantações, exportações e divisas. Porém, é de se esperar que o mercado do auto cultivo e dos acessórios e apetrechos para se consumir cannabis apresente crescimento nos próximos anos, ou pelo menos enquanto essa decisão prevalecer e o cenário não for completamente alterado por novas leis.
Por mais que poucos usuários desejem cultivar suas próprias flores, o número de jardineiros tem chance de crescer e a cultura grower florescer no país. Além disso, o mercado de sementes para o auto cultivo pode ser estimulado assim como o de apetrechos vendidos em headshops. Da mesma forma, novas marcas e players vão disputar esses espaços, e diferentes prestadores de serviços terão oportunidades ampliadas para suprir as demandas dessas empresas. Novos empregos poderão ser criados nessas lojas e marcas e muitas pessoas devem sair do armário e passar a fortalecer a cultura canábica no país.
É claro que, nesses casos, é muito possível que veremos apreensões, prisões e disputas judiciais, porém, espera-se que as instituições do país tenham bom senso e ajudem a fortalecer as iniciativas de organizações civis que podem auxiliar na diminuição dos ciclos de violência e ofertar produtos de maior qualidade, mais seguros e menos danosos à saúde, como já ocorre nos clubes canábicos em países como a Argentina, Uruguai, Espanha e, mais recentemente, a Alemanha.
Ainda, espera-se que a descriminalização da maconha, ao menos no médio prazo, possibilite a soltura de pessoas usuárias presas por pequenas quantidades de maconha e ajude a mudar a cultura racista que ainda prevalece no país, estimulando debates sobre as injustiças históricas ocorridas nas últimas décadas por conta dessa guerra e fortalecendo formas de reparar quem sofreu na pele as consequências negativas da criminalização, possibilitando trazer essas pessoas para dentro desse mercado legal ligado ao auto cultivo e ao itens para o uso da maconha.
A descriminalização da maconha não é uma salvação para o país ou para os usuários, mas fortalece as possibilidades de justiça e pode ser uma porta aberta para abordagens mais efetivas, saudáveis e inteligentes.
Por fim, viva a maconha!