O cânhamo, subespécie da Cannabis Sativa L. que tem fins industriais e costuma ser cultivada com menos de 2% de THC, a depender do país onde é regulamentado, e, portanto, não tem propriedades psicotrópicas. Vale ressaltar que, para além dos usos abordados a seguir, a planta tem inúmeras outras finalidades, tornando-se uma alternativa sustentável e interessante para diversas indústrias, incluindo o uso do cânhamo industrial.
O cânhamo tem uma relação muito estreita com a humanidade, sendo o seu primeiro uso registrado em 10.000 a.C – resquícios de fibra da planta foram encontrados em objetos de cerâmica no Taiwan. Na época do colonialismo, o cânhamo também era matéria-prima para a produção de cordas e velas dos barcos. Os portugueses, por exemplo, chegaram ao Brasil a partir dessas embarcações e, inclusive, implementaram o cultivo da planta para a fabricação de tecidos, prática que já era parte da tradição chinesa há anos.
Com o proibicionismo, no entanto, o cânhamo, por ser da família da cannabis, passou a ser enxergado com preconceito e foi banido de diversos países que já tinham de seu cultivo um costume. Até os Estados Unidos, principal player da guerra às drogas, dedicava parte de seu território a esse plantio – uma empresa automobilística até chegou a estudar o desenvolvimento de combustíveis e plásticos a partir da planta. Mas seu uso foi interrompido por diversas nações, o que não só representou um retrocesso social, como ambiental.
Depois do reconhecimento das diversas perdas que o proibicionismo causou e de pesquisas científicas que validaram as vantagens da cannabis, há um resgate dessa antiga relação e tradição. Seu cultivo, então, passou a ser permitido em alguns países, como nos EUA – o cânhamo é principalmente utilizado para a produção de medicamentos à base de cannabis e com predominância de CBD.
No Brasil, o PL 399/2015 visa, além do plantio da cannabis para fins medicinais, o retorno do cânhamo para objetivos industriais. Mas, até a aprovação desse projeto, a regulamentação em torno da planta no país continua vaga e relativa, exceto em relação aos medicamentos à base de CBD. No relatório “Cânhamo no Brasil“, a Kaya Mind estima que, no quarto ano de regulamentação dessa planta, mais de 15 mil hectares poderiam ser dedicados ao seu cultivo. Além disso, o seu potencial em termos econômicos também foi calculado como extremamente relevante, podendo movimentar R$ 4,9 bilhões no país.
Hoje, essa reintegração da planta na sociedade e o surgimento de novos estudos apontaram um leque ainda maior de possíveis usos do cânhamo. Hoje vamos explorar os mais variados usos do cânhamo industrial.
O uso do cânhamo na indústria automotiva
Os carros e biocombustíveis feitos de cânhamo são parte do passado e do futuro. Em um artigo de 1941 da Popular Mechanics sobre alternativas ao metal que poderiam ajudar em situações de guerra, o empreendedor e engenheiro mecânico, Henry Ford, apresentava seu carro-conceito, feito de fibras de celulose, palha de trigo, cânhamo e sisal. A junção desses materiais criaria um plástico, que seria mais barato e seguro do que o aço (a fibra de cânhamo é 10 vezes mais resistente à impactos).
Além disso, já pensando na diminuição dos impactos ambientais, Ford também quis usar as sementes da planta para extrair um óleo que substituiria os combustíveis derivados de petróleo. O cânhamo tem uma classificação de conversão altamente eficiente, isto é, a maior parte da energia permanece quando você faz a transformação do óleo da semente em biocombustível – 97% da energia é transferível.
No entanto, essa descoberta e outras iniciativas a fim de utilizar o cânhamo como alternativa a outras matérias primas se tornaram uma ameaça às indústrias milionárias. Assim, em conjunto com a discriminação da cannabis por questões raciais e sociais, o cânhamo foi banido dos EUA e o projeto do engenheiro foi por água abaixo.
Mas atualmente, com novas pesquisas e a reintrodução da planta nas regulamentações de diversos países, a concepção de Ford pode se tornar uma realidade. A start-up Aptera Motors, fabricante de veículos, criou um carro de três rodas movido a energia solar e feito de carbono, Kevlar (fibra sintética) e cânhamo. A expectativa é de que sua produção seja iniciada no final de 2021. E essa empresa não foi a única. Em 2010, a canadense Motive Industries apresentou um protótipo de carro elétrico à base de fibra de cânhamo, o chamado Kestrel.
O uso do cânhamo na construção civil, com o hempcrete ou concreto de cânhamo
Chamado de hempcrete em inglês, o concreto de cânhamo é fácil de fabricar, econômico, resistente a fungos e pragas, impermeável, à prova de fogo, seguro em caso de terremotos, com regulamentação térmica e controla a umidade. Produzido a partir da mistura de cal, água e a parte interna do caule da planta, chamada de lascas de cânhamo, o material, apesar de ter atributos à frente de seu tempo, já era utilizado por povos antigos – registros do século VI mostram que obras de arte nas cavernas sagradas de Ellora, na Índia, foram preservadas graças ao uso do hempcrete. Além disso, ele também foi encontrado em pilares de pontes na França. Hoje, essa técnica foi redescoberta e tem potencial para se tornar uma alternativa eficiente para fazer pisos, isolamentos em telhados, melhorar o desempenho térmico de edifícios, restaurar prédios históricos e muito mais.
O concreto de cânhamo não funciona como um material estrutural, mas pode ser integrado à construção das edificações. Ele pode tanto ser preparado e moldado no local, como pode ser comprado pronto, em forma de tijolos ou blocos – estas opções, no entanto, são mais densas e menos eficientes no que diz respeito ao controle térmico e ao combate de umidade que oferecem.
Seus benefícios para a humanidade se iniciam desde o cultivo da planta, que causa menos impacto ambiental por usar pouca água e quase nenhum agrotóxico, além de ter um crescimento rápido e fácil. O hempcrete também pode trazer benefícios econômicos e sociais, por ter baixo custo de produção e por proporcionar a construção de casas mais baratas. Por isso, países e empresas já buscam utilizá-lo como matéria prima – na Índia, por exemplo, a GoHemp já trabalha para pesquisar e desenvolvê-lo.
O uso do cânhamo industrial na aviação
Assim como na indústria automobilística, as fibras do cânhamo também podem ser usadas na indústria de aviação. Sabemos que o cânhamo é uma planta da qual se extrai uma fibra resistente e sustentável. Isso se evidencia ainda mais quando uma empresa canadense, chamada Hempearth e especializada em produtos derivados da planta, cria uma aeronave em que todas as peças, desde os assentos até as asas, são compostas por cânhamo, inclusive o combustível.
O avião de maconha da Hempearth, que foi o primeiro do mundo a ser desenvolvido com essa matéria-prima, tem 11 metros de envergadura, assemelhando-se a um mini jato, e comporta até cinco passageiros, incluindo o piloto. Além da questão da resistência e leveza, a empresa se preocupou com a sustentabilidade do produto. Diferente do aço, produzido a partir da mineração, e da fibra de carbono, feita de plástico, o cânhamo é uma planta que precisa de menos água e território cultivável do que o algodão, bem como devolve nutrientes ao solo.
O mesmo serve em relação ao combustível da aeronave: ele é 100% feito de cânhamo e, portanto, é um biocombustível por não ser desenvolvido a partir de combustíveis fósseis, grandes responsáveis pelas emissões de carbono e conhecidos por não serem renováveis.
De acordo com uma pesquisa da Universidade Metropolitana de Manchester, no Reino Unido, baseada em um período de 2000 a 2018, a aviação é responsável por 3,5% do aquecimento global. Ainda que pareça uma porcentagem pequena, ela é, na verdade, extremamente significativa quando se vê as consequências ambientais de hoje. Com aeronaves feitas de cânhamo, como esse avião do Canadá, não só os voos teriam chance de ser mais seguros, como, também, menos prejudiciais ao meio ambiente.
O uso do cânhamo industrial na produção de substitutos da fibra de vidro
A fibra de vidro é um material usado por diversas indústrias, mas tem uma série de problemas sustentáveis, mas o cânhamo industrial pode proporcionar a produção de um insumo com as mesmas funções e mais vantagens ambientais e estruturais. A fibra de “vidro de cânhamo” surgiu como uma alternativa para compor essa matéria-prima, pois oferece benefícios semelhantes e até melhores, e ainda tem um impacto ambiental positivo.
Hoje, muitas indústrias visam trabalhar com materiais mais versáteis, por isso, a fibra de vidro é muito utilizada. É uma matéria-prima composta por pequenos filamentos de vidro que são unidos por uma resina derivada do petróleo, nos quais se acrescentam substâncias que servem como catalizadoras do processo de polimerização.
Assim, se cria um insumo leve, flexível e resistente que pode ser usado para diferentes fins. A fibra de vidro está presente em diversos produtos do nosso dia a dia, como em capacetes, barcos, brinquedos, pias, carros, isolamento elétrico e muito mais, e é frequentemente usada por indústrias como a de construção civil, automobilística, embarcação, aviação etc.
A fibra de “vidro de cânhamo” é considerada superior à fibra de vidro, pois é mais resistente. Além disso, seus insumos podem substituir os produtos sintéticos que normalmente são adicionados na composição do material original e, assim, serem mais sustentáveis – afinal, fibras naturais são, no geral, mais recicláveis.
Esses insumos poderiam ser utilizados por todas as indústrias que a fibra de vidro hoje está presente, já que teriam as mesmas funções, sendo algumas até mais vantajosas. A pauta de sustentabilidade é essencial atualmente, devendo ser incorporada pelos setores para que haja maior interesse de investimento e aumente a reputação das empresas.
Quais os benefícios sustentáveis do cânhamo industrial?
O cânhamo industrial tem diversas vantagens de cultivo, já que é extremamente resistente, versátil e de simples manejo, mesmo que existam especificidades de plantio e colheita dependendo do objetivo do insumo. Ainda, é uma planta que pode ser utilizada por inteiro, gerando menos desperdício e podendo ter um cultivo voltado para a aplicação em diferentes indústrias.
Além disso, o cultivo do cânhamo utiliza menos água e agrotóxicos do que outras culturas, e até devolve nutrientes ao solo em que foi plantado, mesmo se estiver contaminado ou deteriorado. Sua produção também é carbono negativa.
Essas são todas alternativas e complementos sustentáveis às produções atuais existentes e uma forma de suprir as necessidades de inúmeros pacientes que podem ser beneficiados pelo uso medicinal do CBD, já que do cânhamo também é possível extrair óleo de CBD, além de não prejudicar outras agriculturas ou incentivar o desmatamento.