A esquizofrenia é um transtorno muito conhecido devido às suas características gerais, mas suas causas ainda são pouco esclarecidas. Diante de um cenário de muitas dúvidas e questionamentos, uma das maiores preocupações são quais substâncias são indicadas e quais devem ser evitadas por pessoas acometidas pelo distúrbio. Nesse texto, vamos esclarecer as diversas facetas que compõe esse cenário, e compreender se a cannabis pode ser aliada ou vilã da esquizofrenia.
O que é a esquizofrenia?
Inicialmente, é necessário compreender que a esquizofrenia é um transtorno multifatorial, caracterizado por psicose (perda do contato com a realidade), alucinações (percepções falsas), delírios (crenças falsas), discurso e comportamento desorganizados, embotamento afetivo (variação emocional restrita), déficits cognitivos (comprometimento do raciocínio e da solução de problemas) e disfunção ocupacional e social.
Segundo o DSM-5, uma das principais referências para identificar os transtornos mentais, a causa do distúrbio é desconhecida, porém, há fortes evidências de que componentes genéticos e ambientais falam parte da manifestação da esquizofrenia. Os sintomas geralmente começam na adolescência ou no início da idade adulta e os sintomas devem durar no mínimo seis meses antes que o diagnóstico seja feito. O tratamento é feito com fármacos, terapia cognitiva e reabilitação psicossocial.
Alucinações e delírios são frequentemente observados em algum momento durante o curso da esquizofrenia. As alucinações visuais ocorrem em 15%; as auditivas em 50%; e as táteis em 5% de todos os sujeitos; enquanto, os delírios, em mais de 90% deles. A detecção e o diagnóstico precoces melhoram o funcionamento a longo prazo.
Qual a relação entre o uso aulto de cannabis e esquizofrenia?
As propriedades psicoativas da cannabis são principalmente devido ao delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), a partícula que mais preocupa em relação ao desenvolvimento do transtorno, pois os estudos de corte prospectivos sugerem que o uso precoce de cannabis está associado a um aumento do risco de desenvolver psicoses.
A comunidade científica se dedica a investigar se usuários recreativos de cannabis podem ter mais chance de desenvolver o transtorno. Conforme foi dito anteriormente, a esquizofrenia pode se manifestar devido a diversas causas e, dificilmente, um único motivo pode ser atribuído à sua manifestação. No entanto, pesquisas constataram que usuários frequentes de cannabis de alta potência têm um risco cinco vezes maior de desenvolver transtornos psicóticos quando comparados com pessoas que não fazem o uso da substância. O alerta é maior para pacientes já diagnosticados com o transtorno, o consumo pode agravar os sintomas do distúrbio.
Outro fator muito importante é a faixa etária dos usuários. A adolescência é um momento crítico para a maturação de diversos circuitos neuronais. Os canabinoides presentes na maconha têm o potencial de interferir na organização cerebral, especialmente durante esse período de desenvolvimento, o que está associado ao surgimento de transtornos psiquiátricos, como a esquizofrenia. Portanto, o ato de fumar maconha antes dos 25 anos pode ser significativamente mais prejudicial do que o consumo na fase adulta.
Adicionalmente, a interação entre o consumo de maconha e a esquizofrenia envolve diversos genes, o que reflete a natureza multifatorial dessa condição, que é influenciada pela interação entre fatores genéticos e ambientais. Indivíduos que possuem determinadas variantes genéticas e consomem maconha apresentam uma maior propensão ao desenvolvimento de transtornos psicóticos em comparação com aqueles que não possuem tais variantes, especialmente se o consumo frequente de maconha de alta potência ocorrer durante a adolescência.
Uma vez que não podemos alterar nosso DNA e o sequenciamento do genoma não é uma prática comum, a prevenção do surgimento de transtornos psiquiátricos, como a esquizofrenia, envolve evitar a exposição a fatores de risco ambientais. Estima-se que entre 8% e 24% dos casos de psicose em diferentes países poderiam ser prevenidos mediante a evitação do consumo excessivo de maconha.
Mas afinal, o uso de cannabis pode desencadear esquizofrenia?
Em uma revisão de literatura, pesquisadores analisaram onze estudos sobre a relação entre o uso de cannabis e o risco de esquizofrenia, e algumas conclusões podem ser destacadas. Apenas dois desses estudos afirmaram existir uma relação causal entre o uso da substância e o risco de desenvolver esquizofrenia, indicando a necessidade de mais pesquisas para confirmar essa associação.
Apesar da falta de confirmação causal, observou-se uma associação sugestiva entre o uso de cannabis e o risco de esquizofrenia. Importante ressaltar que essa associação se manteve mesmo após controlar fatores confundidores e erros metodológicos nos estudos.
A análise apontou que o uso de cannabis aumenta o risco de esquizofrenia e outras psicoses, especialmente quando o uso é precoce e em indivíduos com predisposição genética para psicoses. A “hipótese da automedicação” foi descartada, pois a predisposição para psicoses na avaliação inicial não influenciou um aumento no uso de cannabis durante o acompanhamento.
Caso exista uma relação causal, a direção parece ser do uso de cannabis para o desenvolvimento de sintomas psicóticos, e não o contrário. Essas conclusões sublinham a complexidade da associação entre o uso de cannabis e a esquizofrenia, destacando a necessidade de mais estudos para compreender completamente essa relação e seus mecanismos.
A cannabis medicinal e a esquizofrenia: qual o efeito do canabidiol sobre a esquizofrenia?
É evidente que o cenário é muito complexo, mas a cannabis é uma planta muito heterogênea e seu uso recreativo e seu uso medicinal podem se contradizer no que se refere a algumas pautas. A cannabis é uma planta que contém mais de 100 compostos químicos conhecidos como fitocanabinoides, sendo os mais estudados o THC (tetra-hidrocanabinol) e o CBD (canabidiol). Essas substâncias têm efeitos diferentes no corpo humano, e isso contribui para as diferentes perspectivas sobre o uso recreativo e medicinal da cannabis.
No contexto do uso recreativo, algumas pessoas consomem cannabis para experimentar seus efeitos psicoativos. Por outro lado, o uso medicinal da cannabis tem sido estudado para tratar várias condições médicas, como dor crônica, doenças neurológicas, náuseas e vômitos, entre outros.
Entretanto, a dicotomia entre uso recreativo e medicinal não é absoluta, e a legislação e a regulamentação em torno do uso geral da cannabis variam consideravelmente em diferentes partes do mundo, o que adiciona uma camada adicional de complexidade ao debate.
Desde que foram mais bem elucidadas a relação entre o manejo de diversos sintomas e os derivados da cannabis, surge a dúvida se a planta pode ser uma aliada no combate aos sintomas da esquizofrenia. A relação entre cannabis medicinal e esquizofrenia é um tópico complexo e ainda em estudo. Embora alguns estudos apontem que o uso de cannabis, especialmente aquelas com alto teor de THC, pode estar associado a um maior risco de desenvolvimento ou exacerbação de distúrbios psicóticos devido as propriedades psicoativas da cannabis, outras substâncias encontradas na planta podem ser benéficas para o manejo dos sintomas.
Por exemplo, o CBD, a partícula mais popular da cannabis no âmbito da saúde, tem sido estudado por seus potenciais benefícios terapêuticos, incluindo propriedades anti-inflamatórias, ansiolíticas e antipsicóticas. Alguns estudos sugerem que o CBD pode ter efeitos antipsicóticos e poderia, portanto, ser útil no tratamento de condições psicóticas, como a esquizofrenia.
Cerca de um terço dos pacientes diagnosticados com esquizofrenia não respondem aos antipsicóticos de primeira e segunda geração, o que caracteriza o fenômeno conhecido como esquizofrenia resistente ao tratamento (ERT). Inicialmente, estudos exploraram o potencial antipsicótico do CBD em pacientes com ERT, sendo o pioneiro liderado por Rottanburg e colaboradores na década de 80. Esse estudo indicou que as variedades de Cannabis sativa na África do Sul possuíam elevado teor de THC e mínimo ou nenhum CBD, que resultou em psicoses induzidas pelo THC. O CBD mostrou sua ação ao bloquear a conversão do THC em um composto mais psicoativo, o 11-hidroxi-THC, além de potencializar os efeitos benéficos do THC e inibir os efeitos negativos.
Em um ensaio conduzido no Brasil com voluntários saudáveis, foi administrada uma combinação de 1mg/kg de CBD e 0,5mg/kg de THC, e os resultados mostraram que o CBD inibiu os efeitos psicoativos e a ansiedade ocasionados pelo THC, sem alterar seus níveis plasmáticos. Estes desfechos sugerem o efeito ansiolítico e antipsicótico do CBD, que atua como antagonista do receptor CB1 pelo THC.
Em um ensaio clínico mais recente com 42 pacientes, que comparou o CBD com a amisulprida, observou-se uma redução significativa dos sintomas psicóticos da esquizofrenia aguda e do transtorno esquizofreniforme após 2 e 4 semanas de tratamento. A principal diferença apresentada foi a baixa incidência de efeitos colaterais provocados pelo CBD em comparação com a amisulprida.
Em síntese, o CBD demonstrou potencial farmacológico no tratamento da esquizofrenia, sendo comparável em eficácia aos antipsicóticos típicos e atípicos, como o haloperidol e a clozapina, porém com menor incidência de efeitos colaterais ou toxicidade, mesmo em doses mais elevadas. Apesar dos experimentos in vivo e in vitro realizados até o momento, o mecanismo preciso pelo qual o CBD atua na redução dos sintomas da esquizofrenia ainda não foi completamente elucidado, o que reforça a necessidade de mais estudos.
É crucial ressaltar que, apesar da presença de CBD na Cannabis sativa, o uso recreativo da planta não deve ser considerado como tratamento dos sintomas da esquizofrenia, dado que pode desencadear efeitos prejudiciais à saúde, especialmente devido à presença de diferentes substâncias químicas, incluindo as propriedades psicoativas
Mas, infelizmente, é importante salientar que a pesquisa sobre cannabis medicinal e esquizofrenia ainda está em andamento, e os resultados podem variar. Além disso, fatores como a dosagem, a composição da cannabis utilizada e a predisposição genética do indivíduo são essenciais nos efeitos observados.
Como sempre, qualquer decisão sobre o uso de cannabis medicinal deve ser feita em consulta com profissionais de saúde, especialmente em casos de condições psiquiátricas. A resposta a essas substâncias pode variar de pessoa para pessoa, e a avaliação de riscos e benefícios deve ser feita individualmente.