Os cogumelos mágicos são organismos compostos por uma substância chamada psilocibina, um enteógeno capaz de promover alterações nos sentidos e percepções. Nas últimas décadas, os estudos sobre cogumelos mágicos e seus componentes avançou e resultados animadores para o campo da saúde foram publicados.
O início dos estudos sobre cogumelos mágicos
A história da psilocibina começa com um frade franciscano espanhol Bernardino de Sahagún que viajou para o México (“Nova Espanha”) em 1529 e realizou pesquisas etnográficas.
Sahagún é talvez mais conhecido por compilar a História Geral das Coisas da Nova Espanha. O manuscrito existente mais famoso da História Geral é o Códice Florentino, composto por 2.400 páginas organizadas em 12 livros, com aproximadamente 2.500 ilustrações.
No Códice Sahagún refere-se repetidamente a teonanacatl, “Carne de Deus”, os cogumelos sagrados da Mesoamérica.
Durante os séculos seguintes, a existência dos cogumelos mágicos foi considerada controversa. Algumas pessoas negavam a potência desses organismos, e havia um debate contínuo sobre sua autenticidade. No entanto, a partir de 1930, algumas espécies foram identificadas por estudiosos da Universidade de Harvard.
Enquanto isso, o estudo científico de outras substâncias psicodélicas já estava em andamento. Em 1938, Albert Hoffman dos Laboratórios Sandoz (Basel, Suíça) descobriu/sintetizou dietilamida ácida (LAD/LSD) – traduzida da palavra alemã “Lysergsäuredietilamida”). A partir desse marco, teve início do “primeiro renascimento psicodélico”. Em 1957, Hofmann recebeu uma amostra de cogumelos secos e deu a início a segunda era psicodélica, com o estudo dos compostos dos cogumelos.
A palavra “psicodélico” (psique – mente ou alma) e delos (mostrar) tem origem grega e foi adotada pelo psiquiatra Humphry Osmond em 1956, que na época conduzia pesquisas sobre dietilamida do ácido lisérgico (LSD). Psicodélicos são uma classe de “alucinógenos” que produzem substâncias que alteram a mente e efeitos de distorção da realidade, conhecidos como alucinações, uma vez ingeridos. Alucinações normalmente desencadeiam delírios, oscilações emocionais, sentimentos de desapego e desrealização. Os alucinógenos são geralmente classificados em duas categorias principais: (1) drogas dissociativas, como dextrometorfano (DXM), cetamina Salvia divinorum e fenciclidina (PCP) e (2) alucinógenos serotoninérgicos e dopaminérgicos clássicos que interagem com a serotonina e receptores de dopamina, respectivamente. Pertencentes a segunda categoria, a psilocibina representa uma das substâncias promissoras da chamada Revolução Psicodélica, em que se observa uma continuidade nos estudos interrompidos por aproximadamente 30 anos devido a proibição e estigma carregado pelas substâncias. Atualmente, quase 2.000 estudos científicos foram disponibilizados apenas na base de dados Pubmed envolvendo majoritariamente o potencial da psilocibina.
Essa nova era conta com estudos que buscam compreender como os psicodélicos atuam no organismo e podem promover avanços na ciência, na compreensão do funcionamento da mente e seu impacto na saúde.
O mecanismo de ação da psilocibina
A psilocibina, um composto encontrado em cogumelos psicodélicos, como o Psilocybe cubensis, é conhecida por ter um impacto no sistema serotoninérgico do cérebro.
Os receptores serotoninérgicos, também conhecidos como receptores de serotonina, são um grupo de proteínas localizadas na superfície das células que têm a capacidade de se ligar à serotonina, um neurotransmissor químico no cérebro e em outras partes do corpo.
A serotonina é um neurotransmissor essencial que desempenha um papel fundamental na regulação de várias funções fisiológicas e comportamentais, incluindo o humor, o sono, o apetite, a ansiedade, a cognição e o funcionamento geral do sistema nervoso central.
Existem vários subtipos de receptores serotoninérgicos, denominados 5-HT (5-hidroxitriptamina), devido ao nome químico da serotonina. Os subtipos mais estudados são os 5-HT1, 5-HT2, 5-HT3, 5-HT4, 5-HT5, 5-HT6 e 5-HT7. Cada subtipo de receptor está associado a diferentes funções e respostas no corpo e no cérebro
Embora a psilocibina seja mais frequentemente associada aos receptores serotoninérgicos 5-HT2A, seu mecanismo de ação não se limita apenas a esses receptores. A substancia é convertida em psilocina no corpo, que é a forma ativa. A psilocina é um elemento químico estruturalmente semelhante à serotonina e, portanto, pode ligar-se a vários subtipos de receptores serotoninérgicos, incluindo os receptores 5-HT2A, 5-HT2B e 5-HT2C. No entanto, seu efeito mais significativo parece ser mediado principalmente pelos receptores 5-HT2A.
Os receptores 5-HT2A estão localizados em áreas do cérebro associadas à percepção, pensamento e consciência. A ativação destes receptores pela psilocibina provoca alterações na atividade neuronal e leva a experiências psicodélicas, como alucinações, mudanças na percepção e estados de consciência alterada.
Além dos receptores 5-HT2A, a psilocibina também pode afetar outros sistemas de neurotransmissores, como a dopamina, o que pode estar relacionado à experiência psicodélica e a efeitos como o aumento do humor e da criatividade.
É importante notar que a pesquisa sobre a interação da psilocibina com os receptores serotoninérgicos ainda está em andamento, e muitos detalhes sobre seu mecanismo de ação exato e os efeitos a longo prazo no cérebro estão sendo explorados. No entanto, a ativação dos receptores 5-HT2A é amplamente considerada como uma parte central de como a psilocibina induz experiências psicodélicas.
Um estudo piloto de 2004 da Universidade da Califórnia, Los Angeles, explorando o potencial do tratamento com psilocibina em pacientes com câncer em estágio avançado conseguiu reacender o interesse e renovou significativamente os esforços na pesquisa da psilocibina, anunciando uma nova era na exploração de terapia com substâncias psicodélicas. Desde então, avanços significativos foram feitos na caracterização das propriedades químicas da psilocibina, bem como seus usos terapêuticos.
Diante das novas descobertas, estudos ainda têm se concentrado no uso de psicodélicos no tratamento de transtornos mentais específicos.
Estudos sobre cogumelos mágicos no tratamento da depressão
Um estudo piloto testou o efeito da psilocibina em pacientes acometidos por transtorno depressivo maior e resistentes ao tratamento. Os pacientes receberam 10 mg de psilocibina via oral na primeira sessão e 25 mg na segunda sessão, uma semana depois. Os sintomas depressivos, medidos pelo Inventário de Depressão de Beck (BDI) e outros instrumentos, diminuíram significativamente uma semana após o tratamento, quando comparados com os escores iniciais. O mesmo padrão foi encontrado para sintomas de ansiedade. Os pacientes apresentaram redução nos niveis de depressão, que se mantiveram estáveis para a grande maioria após três meses de tratamento. De acordo com os critérios para determinar a remissão de sintomas, o BDI, 8 de 12 participantes atingiram o limite para remissão completa e 5 de 12 estavam em remissão nos acompanhamentos mensais. A psilocibina não causou nenhum efeito inesperado ou eventos adversos graves.
Segundo outros estudos, a ação antidepressiva da psilocibina pode depender de um aumento global na integração da rede cerebral. Exames de imagem indicaram que redes funcionais de ordem superior ricas em receptores 5-HT2A tornaram-se mais funcionalmente interconectadas e flexíveis após o tratamento com psilocibina. A comparação com outros medicamentos convencionais permitiu identificar que a resposta antidepressiva ao escitalopram foi mais suave e não foram observadas alterações na organização da rede cerebral, o oposto do que ocorreu com a psilocibina. Mudanças cerebrais consistentes relacionadas à eficácia, correlacionadas com efeitos antidepressivos robustos em dois estudos, sugerem um mecanismo antidepressivo para a terapia com psilocibina: aumentos globais na integração da rede cerebral e o impacto no tratamento do transtorno.
Além disso, estudos ainda registram outro possível mecanismo de ação antidepressiva da psilocibina/psilocina, que se refere a capacidade de aumentar a dopamina, um neurotransmissor responsável pela regulação das emoções e até mesmo do bem-estar físico de um indivíduo.
Outras investigações também mostram que a administração de psilocibina diminuiu significativamente a ansiedade depressão após a administração de dose única de psilocibina e acompanhamento durante três e seis meses foram observadas 3 e 6 meses em pacientes com ansiedade relacionada ao câncer em estágio terminal.
Estudos sobre cogumelos mágicos no tratamento do abuso de substâncias
Os transtornos por abuso de substâncias são comuns e acometem uma parcela significativa da população, mas as farmacoterapias atuais têm sucesso limitado em tratamentos, pois os medicamentos que reduzem o desejo e o consumo de substâncias estão disponíveis principalmente para a dependência do álcool e, em menor grau, para outras substâncias.
Estudos recentes mostraram que 80% dos fumantes de tabaco a longo prazo demonstraram abstinência de fumar 6 meses após duas sessões de tratamento com psilocibina. Além disso, indivíduos dependentes de álcool demonstraram comportamentos de consumo significativamente reduzidos ao longo de 8 meses após uma ou duas sessões de psilocibina.
Uma revisão sistemática examinou diversos estudos sobre o uso da psilocibina no tratamento de transtornos de uso de álcool e tabaco, incluindo um ensaio clínico randomizado duplo-cego controlado por placebo. Em todos os estudos, a psilocibina foi usada em combinação com algum tipo de psicoterapia. Todos os estudos mostraram um efeito benéfico da terapia assistida por psilocibina no tratamento de transtornos de uso de substâncias.
Estudos sobre cogumelos mágicos no tratamento de dores
O desenvolvimento da dor crônica é um mecanismo complexo que ainda não é totalmente compreendido. No entanto, sabe-se que múltiplos sinais de dor, quando experimentados ao longo do tempo, causam um fortalecimento de certos circuitos neurais através da sensibilização periférica e central, resultando na experiência de dor crônica física e emocional, ou seja, estão diretamente associados aos mecanismos cerebrais. Nessa direção, os psicodélicos podem ajudar a “reiniciar” áreas de conectividade funcional no cérebro que desempenham papéis proeminentes em muitos estados neuropáticos centrais. As evidências clínicas até o momento sobre seu uso no tratamento da dor crônica são escassas; no entanto, alguns estudos identificaram o potencial analgésico da psilocibina na dor oncológica, dor de membro fantasma e cefaleia em salvas.
Embora os mecanismos pelos quais os psicodélicos podem oferecer alívio não sejam claros, existem várias possibilidades, dada a semelhança entre as vias de ativação do 5-HT2A dos psicodélicos e as vias de modulação nociceptiva em humanos. Além disso, as alterações na conectividade funcional observadas com o uso de psicodélicos sugerem uma maneira pela qual esses agentes poderiam ajudar a reverter as alterações nas conexões neurais observadas nos estados de dor crônica.
Diante da preocupação com pacientes acometidos pela dor, estudos identificaram um potencial analgésico na psilocibina, até mais eficaz que alguns medicamentos tradicionais, o que leva a considerar que a substância pode ser realmente promissora no tratamento dessa condição. (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26595349/)
(https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32371500/)
Estudos científicos no tratamento de condições psiquiátricas
É nítido que a psilocibina resulta em mudanças significativas na dinâmica cerebral e na conectividade funcional entre áreas do cérebro. Além das condições já mencionadas, os receptores de serotonina 5-HT2A estão distribuídos em múltiplas áreas do cérebro que desempenham um papel na psicose e nos sintomas psicóticos, como o córtex cerebral (córtex pré-frontal) e periférico.
A presença de corpos celulares serotoninérgicos, os corpos celulares dopaminérgicos são também distribuídos em áreas do cérebro responsáveis processamento de recompensas, e regulação da emoção e dos comportamentos cognitivos.
Hipotetiza-se também que a esquizofrenia (e possivelmente outros transtornos de humor e ansiedade) seja caracterizada pela desregulação/desequilíbrio da serotonina e da dopamina. Nas psicoses agudas, um estudo conclui ainda que os receptores serotoninérgicos 5-HT2A e 5-HT1A desempenham um papel importante na modulação da liberação de dopamina. Isso sugere que a psilocibina pode ter um potencial significativo no tratamento da esquizofrenia e possivelmente outros transtornos psiquiátricos.
As desregulações no sistema da serotonina estão associadas a alterações nos hormônios do estresse, como o cortisol, e transtornos de humor. Após a administração da psilocibina, os níveis de cortisol aumentam e ativam a rede de controle executivo, com subsequente aumento do controle sobre os processos emocionais e alívio do pensamento negativo e das emoções negativas persistentes, responsáveis pelo desencadeamento de diversos transtornos psiquiátricos. Na mesma direção, melhorias no bem-estar que duraram mais de um ano foram observadas em indivíduos saudáveis que receberam uma dose única de psilocibina.
No caso de traumas ou transtorno do estresse pós-traumático, a psilocibina também se mostrou uma grande aliada no alívio dos sintomas, e esse mecanismo pode ser mais bem compreendido nesse texto aqui.
Efeito entourage de cogumelos mágicos
Embora a psilocibina seja o componente destaque dos cogumelos mágicos, esses organismos também contam com um fenômeno chamado de efeito entourage.
O fenômeno do efeito entourage consiste no efeito sinérgico mais potente resultante da soma das partes de um sistema botânico em comparação com o efeito de cada parte individual quando isolada. Essa relação é predominantemente associada à cannabis.
Apesar de a psilocibina ser o composto psicoativo derivado da triptamina mais conhecido e abundantemente produzido em cogumelos mágicos, outros derivados de triptamina, como a psilocina, baeocistina, norbaeocistina norpsilocin e as beta-carbolinas, como harmano e harmol, também têm a capacidade de intensificar os efeitos da psilocibina e melhorar a eficácia do tratamento com psilocibina. Portanto, é provável que esses compostos alucinógenos atuem em conjunto para criar um efeito sinérgico.
É importante notar que o consumo de cogumelos mágicos, que contêm vários compostos, provavelmente resultará em um efeito diferente do que o efeito promovido a partir do consumo de um único composto isolado, como a psilocibina pura. Isso se deve às diferenças na farmacologia entre os cogumelos mágicos como um todo e um único composto puro isolado. Isso também sugere a presença de um sinergismo entre os múltiplos compostos presentes no cogumelo.
Mais pesquisas são necessárias para determinar potenciais sinergias entre estes compostos e outras moléculas ativas e inativas produzidas pelos cogumelos mágicos, e para determinar a bioatividade de cada composto por conta própria. Nesse sentido, é importante considerar que alguns pacientes podem necessitar de tratamentos individualizados que podem exigir uma abordagem de tratamento combinada em oposição ao tratamento com um único composto.
Efeitos colaterais: todo mundo pode tomar cogumelos mágicos?
Em ambientes não controlados, como em contextos recreativos, o abuso de psilocibina pode levar a um fenômeno chamado de bad trip. Essa pode ser uma experiência física e emocional indesejada ou mesmo traumática caracterizada por percepção visual alterada, angústia extrema, medo, falta de coordenação, desrealização, despersonalização, medo excessivo, ataques de pânico, trauma, flashbacks, paranoia e delírio. Esse efeito indesejado também pode ser acompanhado por sintomas físicos como náuseas, vómitos, dores de cabeça, arrepios e sonolência.
A toxicidade dos cogumelos também é um risco associado a algumas espécies de cogumelos psilocibinos. Embora raro e geralmente acidental, o envenenamento por cogumelos também é um risco, e pode levar a problemas gastrointestinais, hipertensão, hiperreflexia, insuficiência hepática, insuficiência renal, convulsões, bradicardia e taquicardia. O veneno de cogumelo também pode exigir intervenção médica ou hospitalização de emergência.
Na mesma direção, indivíduos com histórico pessoal ou familiar de transtorno psicótico grave e transtornos psiquiátricos são desencorajados a usar psilocibina e, por extensão, outros psicodélicos . Em geral, é relatado que a psilocibina tem o perfil de segurança mais favorável de todas as drogas psicodélicas. Milhares de anos de evidências anedóticas, além de estudos científicos modernos confirmam que a psilocibina tem baixa toxicidade fisiológica, baixo abuso/responsabilidade viciante, respostas psicológicas seguras, sem efeitos adversos persistentes associados efeitos fisiológicos ou psicológicos durante ou após o uso. No geral, o uso combinado de álcool e outras drogas podem potencializar os riscos psicológicos e físicos do abuso de psilocibina.
De todas as drogas psicodélicas, é relatado que a psilocibina tem o perfil de segurança mais favorável. Apesar da falta de estudos que investiguem as eficácias comparativas da psilocibina e drogas psicodélicas para o tratamento de transtornos de humor e ansiedade, os densos dados baseados em evidências que existem apenas para a psilocibina sugerem que a substância pode ser a droga psicodélica mais eficaz para o tratamento de tais transtornos.
Por fim, as terapias auxiliadas por substâncias psicodélicas têm o potencial de oferecer novas e significativas abordagens para os desafios enfrentados no tratamento convencional dos transtornos psiquiátricos. A terapia assistida por psilocibina demonstrou ser uma opção viável, eficaz, segura em termos toxicológicos, bem tolerada do ponto de vista fisiológico, e apresenta um vasto potencial na área da medicina psiquiátrica. Isso é respaldado por centenas de pesquisas clínicas. À medida que o uso recreativo e experimental de psicodélicos se espalhou, houve uma reação social e governamental contra o consumo dos elementos. Isso resultou em políticas mais rígidas de controle de substâncias e em uma estigmatização significativa do uso de psicodélicos. No entanto, devido ao avanço científico sobre o potencial benefício terapêutico dos psicodélicos, alguns países estão reconsiderando suas políticas de controle de substâncias relacionadas a psilocibina, e sua legalização ou descriminalização está sendo discutida e reelaborada. Embora interrompido por décadas, no Brasil, os estudos científicos envolvendo a psilocibina e a ayahuasca são autorizados, permitem expectativas positivas no âmbito da saúde, e podem causar uma revolução na psiquiatria.
Outras referências: